O passado é uma roupa velha

Reencontrar pessoas, lembranças ou acontecimentos que marcaram o passado da gente é uma maneira dolorosa de rever-se por dentro. Significa revirar gavetas do armário …

Reencontrar pessoas, lembranças ou acontecimentos que marcaram o passado da gente é uma maneira dolorosa de rever-se por dentro. Significa revirar gavetas do armário onde guardamos todas as nossas recordações que nem sempre estão prontas para a arrumação. Remexer com o ontem, o mês anterior, o ano em que começamos a assinar nossos atos, enfim, tudo que não é o presente, dói muito. Dependendo do tempo da cicatriz ou da ferida que ainda não foi curada e arde e sangra muito a cada simples toque, de nada adiantaram as bolinhas de naftalina. O passado torna-se uma roupa colorida que ainda pode ser vestida.


A semana anterior foi um festival de pequenos e grandes momentos de páginas viradas do meu passado, alguns até que julgava completamente equacionados. Nada é tão fácil quando se trata de sentimentos humanos. E nada pode ser também tão afirmativo. Revi cenários pretéritos que mostraram o acerto, ainda que possa parecer equivocado para outros colegas, dos rumos que empreendi profissionalmente. Neste álbum de recordações forçado, existem pessoas hoje ainda do meu passado que deveriam pertencer ao presente da minha filha e não conseguem nem se projetar no futuro da Gabriela Martins Trezzi.


Tudo começou a ser revirado na quarta-feira, quando um sentimento de nostalgia se instalou em mim depois de um novo encontro da Saudosa Maloca (minha turma da Famecos) para abrigar o Robertinho, que está morando no Canadá e esteve na capital gaúcha para participar de um seminário na PUC. Detalhe: como painelista (coisa muito fina). Não faltaram risadas, abraços e beijinhos sem ter fim e bochechas vermelhas de tanto gargalhar. Mais uma vez, demonstramos, ao provocar nosso passado, que alguns ainda carregam o sonho de mudar o mundo e que viver sem utopia é como apenas passar pela vida, sem vivê-la.


Do passado das minhas escolhas fraternas, gaveta onde guardo com o máximo de carinho todos os meus amigos, e que me revelou opções corretas graças ao conforto do povo da Saudosa Maloca, dos meus amigos da Prefa, das amigas eternas da Zero Hora, dos amigos novos do Correio, saltei direito para o setor profissional. Na quinta-feira, enfurnada em casa, mergulhei um pouco no passado da imprensa gaúcha para uma matéria especial que havia prometido para o "Versão", jornal do Sindicato, que será distribuído no baile dos 65 anos da entidade, no dia 22, no Caixeiros Viajantes.


Para a matéria, tive que mergulhar nos arquivos da memória e lembrei, como se fosse hoje, da greve da Caldas Júnior, no final de 1983, dos piquetes e da coragem dos 300 funcionários. Não, eu não trabalhava na empresa. Recém tinha começado no Jornal do Comércio (JC). Mas, acompanhei por motivos familiares que aqui não cabem ser relatados. Depois, a greve geral em 1986 e a decisão tirada em assembléia de que jornalista participa sim de greve. E daí? E o triste fim do Diário do Sul, que também acompanhei de pertinho por envolvimento emocional, na época, com profissionais do jornal.


No sábado, ao atender um pedido da Gabriela Martins Trezzi de ser a mãe responsável pela turma dela na gincana do colégio, percebi, no meio daquela meninada tão faceira, que sempre estive presente, com toda força, no passado e estarei no futuro da minha filha. Quem me conhece sabe que só mesmo a Gabriela para me tirar da cama, em pleno sábado, às 6h30min (heim, não posso dormir mais cinco minutos?) para ajudar a encher balão, colar enfeites na parede e torcer muito para que a turma dela ganhasse a gincana. No início da tarde, não houve cansaço que me afastasse do shopping, onde fui passear com a Gabriela atrás do novo CD da Maria Rita.


Como tudo termina se encaixando, na terça-feira, a Gabriela me apresentou um poema que pretende declamar na "Mostra Poética" do colégio e que não se trata exatamente de uma poesia. Confesso que fiquei orgulhosa pela escolha espontânea da minha pequena notável e pela sua paixão em declamar. Ela não é mesmo o máximo? Escolheu uma crônica, publicada em 1997, de autoria de uma colunista do jornal americano Chicago Tribune, intitulada originalmente como "Conselhos, assim como juventude, provavelmente desperdiçados pelos jovens". Mas, desde então, corre o mundo conhecida como a poesia do "Filtro Solar".


O texto é repleto de conselhos relacionados com esse meu reencontro com o passado, a minha alegria do hoje e a aposta no futuro da Gabriela. Diz: "? Aproveite bem, o máximo que puder, o poder e a beleza da juventude. Ou então, esqueça. Você nunca vai entender mesmo o poder e a beleza da juventude até que tenham se apagado? Todo dia enfrente pelo menos uma coisa que te meta medo de verdade". E, um dos que mais gostei: "Entenda que amigos vão e vêm. Mas nunca abra mão de uns poucos e bons. Esforce-se de verdade para diminuir as distâncias geográficas e destinos de vida, porque quanto mais velho você ficar, mais você vai precisar das pessoas que conheceu quando jovem".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários