O Planeta dos Cães

Por Flávio Dutra

Fosse eu um roteirista medianamente talentoso adaptaria para o cinema um roteiro tipo o que produziu 'O Planeta dos Macacos', mas agora como 'O Planeta dos Cães', ou 'The Pets Planet' na versão em inglês. A história seria mais ou menos assim: a cachorrada, graças ao tratamento refinado recebido ao longo dos anos em alimentação, suplementos, cuidados veterinários, adestramento, confortos em casa e muito carinho, evolui para um estágio superior, enquanto os humanos, entretidos nas redes sociais e acomodados às modernidades, involuíram cada vez mais, perdendo espaço e poder para os seus mascotes.

Só que os cães, um tanto agradecidos, não tratarão mal seus ex-tutores, garantindo-lhes o mínimo para a sobrevivência: comida, água e uma casinha no quintal para dormirem. Não haverá coleira para os humanos, pois os cães não perderão tempo em sair a passear com as pessoas. Mas os celulares ou similares serão confiscados e a circulação humana ficará restrita, até porque os automóveis serão transformados em habitações populares para os animais em situação de rua. Assim eles não ficariam vagando por aí, a esmo, como os humanos.

Os gatos, entretanto, serão discriminados e hostilizados porque concorriam com os cães na conquista do planeta. Mais frágeis e menos combativos, ficaram um degrau abaixo na escala evolutiva e agora pagam caro por esse retardo. A vingança dos gatos é miarem todas as noites e a noite toda para perturbar o sono dos cachorros, que revidam com uma severa repressão aos felinos. Os macacos também estão na mira da cachorrada, só que os espertos símios, que já comandaram o planeta e sabem como a coisa funciona, ficam lá na copa das árvores, mexendo com os novos donos do pedaço e defecando nas cabeças deles. Até por isso, é considerada ofensa grave, passível de prisão por crime de racismo, um cão ser chamado de "macaco".

O roteiro irá mostrar também as dificuldades para a implantação do Regime Canino. Os cães mais ferozes, dos clãs dos Mastiff, dos Pitbull, dos Cães-Lobos, dos Bulldog passam se digladiando pelo poder e nem o líder máximo, o autoritário Dobermann, conseguia neutralizar os briguentos. Os cães mais representativos das raças populares, liderados pelo Vira-lata Caramelo, reclamavam que os animais das raças tidas como nobres, os Fox Terrier, os Bichon Frisé, os Chow Chow, os Lulus da Pomerânia recebiam privilégios e se assumiram como elites da sociedade canina. Criaram-se verdadeiras castas. "Continuam sendo cachorros de madame", acusava a turma do Caramelo. Os clãs de cães do hemisfério Sul como o Fila Brasileiro, o Pila Argentino, o Pastor Australiano denunciaram que estavam sendo vítimas de discriminação do europeu Dogue Alemão e do Buldog Americano. Já os primos Lobos, conhecidos arruaceiros, formaram gangues que passaram a ameaçar os cães de bem, sem que fossem combatidos nas suas investidas.

Enfim, a utopia canina virou um mero canil, um mundo cão e, ainda, reproduzindo o que de pior havia na sociedade humana. O Cãonselho dos Sábios, integrado pelo Pastor Alemão, o Labrador Retriever, o Border Collie, o Husky Siberiano e o Rottweiller destitui o líder e decide devolver o poder aos humanos. Aí acontece o inesperado: a raça que sucedeu os humanos, provida das necessidades básicas, havia aderido a uma zona de conforto e, assim, continuou involuindo e ficou inapta para retomar o status anterior.
Foi então que os ladinos e ágeis macacos deram o golpe e reassumiram o poder que um dia fora deles, restaurando o Planeta dos Macacos. E ainda desdenharam dos ex-senhores: "Aquele pessoal ainda andava de quatro patas!". Os de quatro patas perderam o poder e as mordomias de antes, passando a dividir com os humanóides os espaços que restaram, os restos de comida, uma tigela de água e a casinha no pátio. Uma cena dramática para finalizar o roteiro. Para efeito de produção cinematográfica pode começar na sequência uma nova saga da franquia 'O Planeta dos Macacos', com várias continuações.

Alô, Netflix, alô Spielberg. Podem me contatar. Não tenho agente, é negociação direta pelos direitos do roteiro.

Claro que tudo isso é ficção, mas por via das dúvidas vou ficar atento às reações e atitudes da Felícia e do Godo, os pets aqui de casa. Vai que...

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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