O poeta está vivo com seus moinhos de vento

Por Márcia Martins

*O texto foi originalmente publicado em 04/07/2018

No sábado, 7 de julho, completam-se 28 anos da morte do grande, do rebelde, do irreverente Cazuza, nascido Agenor de Miranda Araújo Neto. Lembro muito bem, com uma exatidão impressionante do dia da sua partida. Coincidência, mas era também um sábado ensolarado de julho, uma temperatura mais amena da que nos assusta nos últimos dias e nos empurra para dentro dos apartamentos e das casas. Fazia uma faxina na residência onde morava, na época com o pai da minha filha, no efervescente bairro Bom Fim. Quando, passando um pouco das 10h30, o locutor da rádio informa a morte do Cazuza, aos 32 anos, após um período de sobrevida desde que se descobriu portador do vírus HIV.

Imediatamente, as rádios passaram a tocar as músicas lindas e poéticas dele e as emissoras de televisão, apesar de ser sábado, dia ruim para mudar a grade de programação, anunciaram a exibição de alguns especiais com Cazuza. E eu, fã de carteirinha do Agenor, tive que fazer pequenas adaptações no plano de sábado à noite, que incluía cuidar dos sobrinhos, Rafa, com cinco anos, e Mila, com três, e enchê-los de cachorro quente, chocolates e filmes da Disney. Para não decepcionar tanto os filhos da minha irmã, mantive a comilança, mas rezei para todos os santos, orixás e crenças pedindo que as crianças dormissem cedo para que eu pudesse ver um especial que a Rede Globo havia anunciado.

O Rafa cansou logo e não resistiu ao sono, mas a mana dele, a Mila, insistiu e persistiu muito, dizendo que não queria dormir e não adiantava nem eu contar estórias de fadas que o sono não chegava. E o que eu poderia fazer? Dar uma martelada na cabeça da sobrinha é que não era permitido. Naqueles idos de 1990, não existiam ainda as facilidades que algumas operadoras de canais fechados oferecem hoje de gravar programas e a Internet era uma promessa muito incipiente. O jeito foi disfarçar, ligar a televisão no canal que eu queria ver e enrolar os pequenos até que venci os dois no cansaço.

Eu já era fã assumida do Cazuza, tinha todos os seus LPs (CDs começavam recém a chegar ao mercado), havia visto os shows que vieram para Porto Alegre e sabia de trás para frente todas as músicas. Uma das que eu mais gostava (ah, este meu lado romântico) chamava Codinome Beija Flor. Por uma destas armadilhas da vida, no momento em que consegui focar minha atenção no Especial sobre Cazuza que passava na emissora, o programa reprisava um dueto do poeta com a cantora Simone interpretando esta música.

Não existe nada mais lindo, poético, romântico e, digamos, dor de cotovelo do que os versos do Codinome Beija Flor, uma das músicas do álbum Exagerado, de 1985, que dizem: "você sonhava acordada, um jeito de não sentir dor, prendia o choro e aguava o bom do amor". Mas desde que ouvi tal música, pela primeira vez, fiquei intrigada com os tais "segredos de liquidificador". Pois no programa daquele sábado à noite, Cazuza explicou que a expressão referia-se a "uma coisa de língua no ouvido", mostrando com a sua própria língua os movimentos circulares que o termo metaforizava. Realmente, este Agenor era um sujeito genial, criativo, abusado, rebelde, inovador, sensível, surpreendente.

Com o tempo, fui percebendo que as principais músicas do Cazuza representavam uma página da sua vida, uma história do seu jeito de enfrentar a doença, uns minutos da sua rebeldia familiar, capítulos da sua adolescência. Assim ele compôs 'Boas Novas' ao retornar de Boston, onde foi acelerar o tratamento contra o vírus HIV, em que narra: "eu vi a cara da morte e ela estava viva".

Pois o poeta não morreu, o poeta está vivo com seus moinhos de vento a impulsionar a grande roda da história, mas quem tem coragem de ouvir, amanheceu o pensamento que vai mudar o mundo com seus moinhos de vento. Esta música tem letra de Dulce Quental e melodia do Frejat que conta no livro Música e Outras Conversas, do cantor Leoni, que foi escrita para o Cazuza, em 1988, quando ele voltou de Boston. Mas a gravação só ocorreu em 1990. "Ele chegou a ir ao estúdio quando a gente estava gravando o disco, mas não sei se ouviu", narra Frejat. "Quando o disco foi gravado, ele faleceu. Assim, a música passou a ter outro significado".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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