O tédio (e não o mundo) é Discovery

A areia e seus mistérios "Os grãos de areia têm uma espantosa propriedade: são sempre arenosos. Dos desertos às praias tropicais, cobrem imensas superfícies …



























A areia e seus mistérios "Os grãos de areia têm uma espantosa propriedade: são sempre arenosos. Dos desertos às praias tropicais, cobrem imensas superfícies do globo terrestres. Como se comportam estes grãos? Como se organizam em tão volumosa quantidade? Como permanecem juntos? Que misteriosas características os levam a formar essas áreas de aparência homogênea? Por mais que olhe, o olho humano não vislumbra sua maravilhosa mecânica de movimentos. Recém agora equipes de cientistas se debruçam sobre montículos de areia em laboratórios. Tentam decifrar as engrenagens da formação das dunas e montes de areia. Descobriram algo insólito: os grãos não são iguais nem diferentes. Eles conservam, todos e um a um, detalhes que os fazem se encaixar perfeitamente um junto ao outro. Como minúsculos poliedros irregulares, multifacetados para gerar um mínimo de atrito entre si, os grãos de areia se acomodam sob pressões variáveis, sob as ondas e se submetem a rochas eternas sobre eles, sem que nada disso afete a co-relação de proximidade.  Pois é num surpreendente jogo de acomodação relativa que os grãos de areia revelam a harmonia do universo: já há provas conclusivas de que, não importa o volume de areia, há um sistemático movimento de justaposição ao redor de cada grão pelos grãos circundantes. Quer dizer, para os grãos, não importa onde é em cima, embaixo, ao lado, esquerda, direita - tudo é ao redor. Assim, estabelecido este princípio fundamental de localização, cada grão assume sua posição sem interferir com o posicionamento dos demais, e vice-versa. Quando uma força impele alguns ou milhares de grãos numa direção, uma lei de compensação percorre o conjunto mais próximo de grãos e todos, em sincronia matemática, reagem a essa força. O resultado é um deslocamento por igual, que gera um afastamento gradativo, proporcional à distância dos grãos desde o centro propulsor dessa força. Os grãos, supõem os cientistas, parecem ter uma memória embutida em sua estrutura molecular, que instantaneamente relembra todos os pontos anteriores em que já estiveram antes situados. Por estarem levemente encostados, assim que recebem algum impulso, é como se soubessem para onde devem ir. O efeito, impressionante, é que os grãos, em movimento único, convergem e divergem harmoniosamente até preencherem todos os espaços submetidos à mudança de posicionamento. Os grãos rompem automaticamente a inércia e rolam uns sobre os outros, como se procurassem uma "solução espacial" para aquela zona alterada em seu repouso. É por esse fantástico recurso, o de compreender a pressão, que a areia se torna móvel. Por isso é possível o ser humano deixar rastro na areia: a areia aprendeu a se comportar de acordo com as forças da natureza. E isso garantiu, por milhões de anos, a sobrevivência de cada grão em meio ao monte. Pense num mundo sem areia e você irá valorizar até o mais microscópico dos grãos. Sem areia, o que seria das pegadas da humanidade?"


(Para os fraguinhas Mariana, Gabriel e Maria Clara)


Os sem-terra e os sem-teto, vítimas das contradições do sistema social brasileiro, são os excluídos que mais chamam a atenção na paisagem. Mas não estão sozinhos. Afastados ou nas cercanias, outros desfavorecidos passam despercebidos. Se agrupam e se movimentam em torno de outros tipos de carências, umas nem tão justas quanto um terreno outras nem tão prioritárias quanto um teto. Para não se alienar, repare neles:


Sem-teta - Além de órfãos e bebês abandonados em lixeiras, se destaca uma multidão de homens públicos que, ou por serem ainda inexperientes em corrupção, ou porque lhes falte desenvoltura exploradora, ou por verem as mamatas federais bloqueadas pelos mais safados, não chegam a ter acesso às vacas estatais e seus úberes monumentais.  Em vez de protestar publicamente, resmungam lá com as suas úlceras.


Sem-tato - A lista é interminável: incivilizados, estúpidos, imbecis, grosseiros, mal e deseducados, ignorantes etc. Todos com um traço em comum: desconhecem polidez e são desprovidos de noções de boas maneiras e têm repulsa por etiqueta. Incapazes de abordar outra pessoa com sutileza, seus gestos mais suaves na direção do próximo foram herdados de neanderthais e seu principal movimento é invadir as calçadas armados de esbarrões e cotoveladas.


Sem-totem - São os destribalizados, aqueles que ainda não localizaram seus territórios míticos ou não conseguiram se identificar com os ícones culturais do momento. À margem dos signos modernos, sofrem discriminação e têm crise de identidade. Desorientados por suas deficiências simbólicas, andam extraviados por ambientes como galerias, eventos de todo tipo, auditórios, espaços cult, em busca de uma bandeira para seu movimento. Por isso não se manifestam.


Sem-tétano - De um lado, hipocondríacos com enorme variedade de sintomas adquiridos que reivindicam, em zonas baldias e locais em construção, a chance de contrair doenças num ferro sujo, num prego enferrujado; de outro, gente que já tem malária, dengue e outras misérias que a falta de saneamento básico lhes garante, mas que suplica por um mal maior que lhes dê fim a tanto tormento como dependentes da saúde pública. Morrer é o seu derradeiro ato de conquista - um lugar na vala nacional dos indigentes.


 


Etc.


? Governantes, políticos, administradores públicos, empreiteiros e toda a multidão envolvida em interesses econômicos se dividem entre a imensidão daqueles de rabo preso e uns poucos com rabo solto. Há, porém, uma diferença fundamental entre os de apêndice caudal liberado e os do tipo aprisionado. Os de rabo preso não se dividem: são muito mais unidos que os de rabo solto. Por isso só um dos grupos cresce sem cessar.


Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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