Os falcões da propaganda gaúcha e seus mitos fundadores

Por Marino Boeira

Durante cerca de 30 anos, entre 1970 e 2000, trabalhei nas principais agências de propaganda de Porto Alegre, desempenhando funções mais ou menos importantes e conhecendo alguns dos seus principais líderes.

Praticamente nenhum deles tinha, ou pretendia ter, alguma base teórica para o seu trabalho. Eram, acima de tudo, talentosos negociantes, capazes de ganhar dinheiro em qualquer atividade comercial, inclusive na propaganda.

É sobre eles que vou escrever a seguir, analisando seus perfis, o que certamente não coincidirá com o que pensam sobre eles, outras pessoas.

É apenas o que penso.

Nessa minha seleção, vou incluir Flávio Antônio Correa, Hugo Hoffmann, Ito Ferrari, Antônio Mafuz, Rolfe Poganski, Salimen Júnior e Daltro Franchini.

FLÁVIO ANTÔNIO CORREA - FAVECO

O conheci no departamento de Jornalismo da TV Piratini. Era filho de um dos herdeiros dos negócios de Assis Chateaubriand e voltava a trabalhar depois de enfrentado e vencido uma grave doença. Ficou pouco na televisão. Logo se transformou num publicitário de sucesso. Me convidou em 1969 a trabalhar na sua agência, a Standard, com um argumento imbatível: vais ganhar muito mais. O Faveco, nascido em berço esplêndido, não tinha qualquer inibição no trato com as demais pessoas, fosse ela o Governador do Estado ou a faxineira da agência. Autocrítica era algo que não fazia parte de sua personalidade. Uma vez, o Ibsen Pinheiro disse que o sujeito era tão confiante em si, que seria capaz de andar de cuecas na frente da Rainha da Inglaterra, como se estivesse vestindo um fraque. Assim era o Faveco. Naqueles anos em que trabalhei na Standard, um dos seus diretores era o Plínio Cabral. Ele tinha sido dirigente do Partido Comunista e depois Chefe da Casal Civil no segundo governo de Ildo Meneghetti. Autor de vários livros, um intelectual de respeito, mas que se submetia à autoridade do Faveco nas discussões internas da agência, o que sempre causava algum tipo de espanto para alguém que, como eu, acreditava na superioridade da inteligência sobre a impulsividade irracional.

HUGO HOFFMANN

Quase trabalhei com ele. Tinha fama no mercado de ser extremamente grosseiro com seus funcionários. Dizia que costumava rasgar na frente dos seus autores as peças publicitárias que não gostava. Uma vez, me convidou para trabalhar na sua agência, a Mercur. Nos encontramos numa sexta-feira na sua sala. Depois de duas ou três frases, me perguntou qual era a minha linha ideológica. Quando disse que pretendia ser socialista, sacou a pergunta que já tinha preparado, porque obviamente conhecia previamente minhas tendências políticas. 

- Como um socialista pode trabalhar numa empresa que defende o capitalismo?

- Estou sendo convidado para ser empregado ou patrão? Como empregado, não vejo problema. Como patrão, teria que pensar melhor.

Fiel ao seu estilo, ele encerrou a conversa na hora com uma frase definitiva.

- O emprego é teu. Começas na segunda-feira.

Trabalhar na agência significaria ter que abandonar as aulas de História na Ufrgs, pela manhã. Fiquei na dúvida durante todo o fim de semana e na manhã de segunda, até chegar à agência e ficar sentado numa sala esperando a pessoa que iria me mostrar minha mesa de trabalho.

Nessa hora tomei a decisão: levantei da cadeira, abri a porta e fui embora para nunca mais voltar. Depois disso, nunca mais falei com Hugo Hoffmann.

ITO FERRARI

O conheci quando escrevia o Repórter Esso na TV Piratini e ele era o diretor regional da MacErickson, a agência que tinha conta da Esso. Anos mais tarde, deu o grande lance de sua vida, saindo da agência com as principais contas na mão e se associando a Eduardo Willrich Neto e Gilberto Lehnen, na Marca, até então uma pequena agência. Esse período coincidiu com a minha ida para a Marca, quando pude conhecê-lo melhor. Ameno no trato, passava sempre a ideia de que as pessoas serviam apenas para fazer com que seus negócios dessem certo. Era aquele sujeito que não prejudicava ninguém intencionalmente, mas que não ajudaria ninguém também, se isso trouxesse um prejuízo, por menor que fosse, a possibilidade de ganhar mais dinheiro. Os anos em que trabalhou para uma multinacional americana deixaram marcas na sua linguagem diária. Na época, causava estranheza entre o pessoal da agência e mesmo nos clientes o uso que fazia de termos como branding, budget, checking, clipping, feedback, deadline, follow up e share, não tanto pelas palavras em si, que já começavam a ser correntes no meio, mas que ele usava, transformando substantivos em verbos, como "feedbekar", que certamente não existia na língua inglesa. Embora poucos lembrem, foi ele o criador do curso de Propaganda na Famecos, PUC, desmembrando-o do Jornalismo.

ANTÔNIO MAFUZ

Nos três ou quatro anos que passei na MPM, devo ter falado com ele uma meia dúzia de vezes. Vivia encastelado em sua grande sala no último andar do prédio da rua Silveiro, onde só se sentia acesso mediante chamado dele. Sempre me pareceu uma pessoa afável, mas um pouco entediada com as tarefas do dia a dia da agência, entregue inteiramente a uns poucos diretores, mais seus amigos de muitos anos, que profissionais do ramo. A MPM parecia naqueles anos uma verdadeira cidade com vida própria, que atraia a atenção e a inveja de concorrentes, clientes e políticos. Era comum, nos fins de tarde, ver chegando no estacionamento da agência, o então governador Jair Soares, que segundo se dizia vinha pedir conselhos ao Mafuz. A agência tinha as maiores contas do Estado, algumas até conflitantes entre si, mas que não abriam a mão de ser "atendidas pelo seu Mafuz". Isso começou a ruir, quando um então auxiliar de atendimento convenceu um desses grandes clientes, um fabricante de calçados, a deixar a MPM e criar uma nova agência para ele.

ROLFE POGANSKI

Tinha sido diretor financeiro da MPM, de onde saiu para fundar a sua agência, a Módulo. Sua ideia era repetir nos menores detalhes a história da MPM. Um talento incomum na arte de ganhar dinheiro, vivia, como disse uma vez o Fernando Henrique, na fronteira do eticamente permissível. Aproveitando o fato de que, com o fim da ditadura militar, as contas publicitárias do Governo, até então cativas da MPM, caíram no mercado, escolheu o PMDB como ponto de apoio para suas reivindicações na disputa que se iniciava. Foi bem-sucedido e durante o governo Sarney não parou de ganhar dinheiro. Quando o Collor chegou com outros protegidos, vendeu a agência e foi ganhar mais dinheiro na construção civil. Era um homem rústico, quase sem nenhuma cultura, mas com uma capacidade imensa de usar o talento dos outros para obter o que queria. Religioso, de formação Batista, espalhava seus fiéis (mais fiéis a ele do que a sua igreja) nas funções financeiras da agência, certo de que isso garantiria sua retaguarda. Eu era o intelectual de esquerda que ele gostava de exibir em certas rodas. Foi o único momento em minha vida de publicitário que tive oportunidade de ganhar muito dinheiro, mas não aproveitei.

SALIMEN JÚNIOR

Trabalhei com o Salimen praticamente no fim da sua carreira de publicitário, na Símbolo Propaganda. Alguns anos antes tinha sido convidado a trabalhar na sua agência, a Publivar, mas preferi ir para a MPM, o que ele depois sempre me cobrava como uma ingratidão. Nas décadas anteriores tinha sido um dos mais famosos apresentadores de programas de auditório nas emissoras de rádio e mais tarde na televisão. Orgulhava-se de ter dirigido a primeira transmissão externa a cores pela televisão, durante a Festa da Uva de 1972, em Caxias do Sul, pela TV Difusora. A lembrança que guardo dele era de uma pessoa extremamente humana, preocupada com o bem-estar dos seus amigos e devotando um grande amor aos filhos. Me chamava de poeta, o que sempre recebi como um elogio. Era uma pessoa com o nível intelectual bem acima da média dos publicitários a quem conheci. Não sendo exatamente um intelectual, sempre foi alguém aberto a todas as novidades no mundo da cultura e extremamente tolerante com opiniões adversas a sua. No final da vida, se tornou um dos diretores do Jornal do Comércio, onde liderou um processo de modernização do jornal.

DALTRO FRANCHINI

Meu último emprego numa grande agência de Propaganda foi com ele, na Símbolo Tinha estado algum tempo fora do mercado e voltei por indicação do Itamar Graven e com aprovação dele, num momento em que o mercado se fechava para os profissionais mais velhos. Embora tenha sido presidente da Federação Nacional das Agências de Propaganda e exercido uma grande liderança na área, era uma pessoa tímida, avessa às discussões. A partir de um certo momento, durante meus anos na Símbolo, a nossa relação, sem deixar de ser profissional, se tornou bem mais amigável, apesar da enorme diferença entre nossos pontos de vista sobre política, principalmente. Guardo boas lembranças das nossas conversas principalmente sobre a história de alguns políticos conhecidos.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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