Os gênios russos e o escriba mequetrefe

Os russos são fogo: Dostoievski, Tolstói, Gogol, Tchékhov e Turguêniev. Isso pra começo de conversa. Agora, não sei se alguém se deu conta da ordem decrescente dos nomes na lista. Em geral pensamos assim, repetindo no automático velhas opiniões ou preferências jornalísticas.

Confesso meu temor às velhas opiniões, porque temos uma tendência a aceitá-las sem questionamentos, como se muitos outros antes de nós não tivessem cometido o mesmo pecado. Veja, não é o caso de negar que a Terra é redonda, mas de examinar as provas. Acho melhor batalharmos por uma opinião em vez de herdá-la por preguiça ou reverência por alguém ou pela simples autoridade. Quanto às preferências jornalísticas, é simples: o jornalismo é atraído pelo espetáculo e pródigo em simplificações toscas. Mas qualquer leitor razoável sabe que não se pode medir o tamanho de um escritor com uma fita métrica, fora os casos de mediocridade paulo-coelhenta, quando na verdade a própria fita métrica é dispensável.

Confesso minha simpatia por Turguêniev e Tchékhov. Confesso também não antipatia mas uma certa irritação com Dostoievski e Tolstói. Melhor deixar pra lá a pena por Gogol, mais difícil de esclarecer em duas ou três linhas. Parte da simpatia e irritação é pelas pessoas e parte pelos escritores, quer dizer, pela literatura deles. De qualquer forma, nem simpatia nem irritação me impedem de ver as qualidades e defeitos.

Turguêniev e Tchékhov não eram carolas como Dostoievski e Tolstói, mas, no terreno do que chamam virtudes cristãs, eram muito superiores. Não é fácil, meu amigo. Tente juntar talento e caráter pra ver se você vai longe. A boa notícia é que talento não depende de caráter, mas - lá venho eu de novo - o caráter pode contaminar uma obra com opiniões imbecis ou distorções canalhas. Pureza é como a objetividade, ou Deus e as notas de cinco mil dólares: dizem que existe, mas ninguém nunca viu.

Tolstói não perdia a chance de encher o saco de Turguêniev. A troco? Um homem rico, com talento reconhecido - inclusive por Turguêniev, que o propagandeava na Europa -, precisava disso? É difícil imaginar o quê em Turguêniev o perturbava. Gosto de pensar que o digressivo e algumas vezes tedioso Tolstói invejava o poder de Turguêniev de ir ao ponto com rapidez e precisão. Outra coisa é que cada livro de Turguêniev tratava de um nervo exposto da mãe Rússia - e tratava como nunca antes: ele dava as cartas e deixava pro leitor montar o jogo. Nunca escrevia um libelo. Como notaram os franceses: eis aí o modelo de literatura pura. Em tempo: apenas Tchékhov, entre os grandes russos dessa época, repetiu a façanha.

Com certeza, Tolstói achava que era mais talentoso, que conseguia ir mais fundo e mais longe. Mas devia ter noção dos defeitos, ou pelo menos alguma suspeita. O talento de Tolstói carecia da inteligência e polimento do talento de Turguêniev. Deve ser chato pra um grande escritor ter de admitir que pode ser corrigido por outro, ainda mais se o considera inferior.

Dostoievski foi mais injusto. Até de dívida de jogo Dostoievski foi salvo por Turguêniev e o que fez? Pagou o mais tarde que pôde e nem agradeceu. Bom, além de não agradecer, se dedicou à difamação.

Em Os demônios, satiriza Turguêniev. Evidentemente ninguém está livre de ser satirizado, mas Dostoievski faz uma caricatura mais do que injusta ou grotesca. Acho que beira a canalhice - qualquer livro e qualquer postura de Turguêniev desmentem Dostoievski. É frívola, vingativa - numa palavra, trata-se de maldade. Depois, em termos literários, é indigna de um autor que se propõe, sempre, a ver as pessoas com profundidade. A única justificativa pro comportamento de Dostoievski é que ele era uma pessoa transtornada.

Como um aperitivo, abro aspas pra Edmundo Wilson (11 ensaios, Companhia das Letras, 1991): "Nenhum outro escritor pode ser lido de ponta a ponta com admiração mais constante. Os grandes romancistas são mais desiguais: traem nossa crença com extravagâncias; decaem no patético inoportuno; combinam visão poética com refugos. Mas Turguêniev nem chega a costear tais deficiências, e nunca se mostra medíocre; sua textura é tão notável quanto seu temperamento.

"Essa textura mal chega a transparecer em tradução. Turguêniev é mestre da língua; interessa-se pelas palavras de uma maneira que os outros grandes romancistas russos do século XIX - à exceção de Gogol - não se interessam. Sua escrita é densa e substanciosa e, no entanto, nunca marca tempo, move-se sempre."

Vamos agora à comparação que Wilson faz com Tolstói e Dostoievski: "As pinturas de gênero - a ceia fúnebre no final de Uma moça infeliz, a transferência da propriedade em Um Lear da estepe - são admiravelmente organizadas e postas em ação, embora a animação de movimento que Tolstói consegue produzir em episódios como a caça, em Guerra e paz, e as corridas, em Ana Karênina, esteja bem além dos dotes de Turguêniev, assim como o estão a comicidade cumulativa e o alvoroço da festa na cidade em Os demônios, de Dostoievski. Mas nem um nem outro podem completar uma superfície, adequar linguagem e assunto como Turguêniev. O clima não é nunca o mesmo; as descrições da região rural são bastante concretas, fruto, como as de Tenneyson, de exata observação (...); não obstante, são também coloridas pelo estado de ânimo da pessoa que ele faz percebê-las".

Essas poucas linhas mostram o que deve ser uma crítica. Wilson não se deixa levar por superstições literárias ou ideológicas, ou por argumentos de autoridade. Sua opinião é cheia de nuances. Mais, todos os exemplos que evoca na comparação apontam a extensão e profundidade de sua leitura. Eis a diferença entre crítica e o rebolado da líder de torcida.

Alberto Manguel, em À mesa com o chapeleiro maluco, dá uma série de definições de leitor ideal. Cito esta, que me parece uma das mais sagazes: "Para o leitor ideal, cada livro é lido, até certo ponto, como sua própria autobiografia". Aí talvez esteja meu problema com Tolstói e Dostoievski: acho muito pouco de autobiográfico nos livros deles. Eu compreendo a desgraça de um Raskólnikov ou um Stavróguin, mas meus sentimentos não estão com eles ou, se estão, é numa voltagem mixuruca. Em compensação, posso me identificar facilmente com personagens de Turguêniev, Tchékhov e Gogol, mesmo com os mais estúpidos. Outro ponto: acho os dramas do dia a dia de um Turguêniev ou Tchékhov, às vezes com a aceitação resignada deles, mais terríveis que os surtos dostoievskianos. Não tem Prozac que nos salve dos dramas do dia a dia.

Essa conversa toda é porque acabei de reler Primeiro amor (Penguin-Companhia, 2015, tradução de Rubens Figueiredo). Uma novela, ou pequeno romance, escrita sem alarde. Turguêniev parte de uma situação biográfica, mas, por pudor ou por malícia literária, apenas insinua o inferno que queima abaixo da superfície. Ele poderia dizer horrores dos pais, principalmente da mãe, uma megera que folhetim nenhum imaginou. Enfim uma vingança, mesmo que tardia. Não, ele prefere traçar - com leveza e argúcia psicológica - alguns retratos da elite russa, seus problemas com dinheiro, seus problemas com a ociosidade e os consequentes jogos de poder. Então, quase que sem querer, emerge aí um drama verdadeiro.

Ao contrário das superproduções tolstoianas e dostoievskinianas, Turguêniev deixa quase tudo pra nós, leitores, construirmos, se temos cabeça ou paciência pra isso.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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