Os pequenos milagres do Coronel

Seu nome era Patrício Vieira de Moraes, mas todos o tratavam como Coronel Patrício. Apenas alguns mais chegados tinham a intimidade de chamá-lo de …


Seu nome era Patrício Vieira de Moraes, mas todos o tratavam como Coronel Patrício. Apenas alguns mais chegados tinham a intimidade de chamá-lo de Vovô Picurra. Ganhara o título de coronel com a espada na mão, em uma das tantas revoluções que varreram os campos do Rio Grande, nos idos de 1890. Mas o que mais lhe dava orgulho, era o título de doutor, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

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De suas antigas façanhas na revolução, eu ouvira muitas vezes nas rodas de fogo da fazenda do Passo Grande. Muito mais divertido era ver o Vovô Picurra mexer em uma caixa de madeira, que era chamada de "a farmácia homeopática". Ali, eram guardados dezenas de frascos, caprichadamente alinhados em ordem alfabética.
Eu ficava encantado com os misteriosos nomes dos rótulos, que nunca mais sairam de minha memória: Atropa Belladonna, Nux Vomica, Calendulla, Chamomila, Natrum Muriaticum e um tal de Formica Rufa (que o avô dizia ser simplesmente pó de formiga vermelha).
Meu favorito era o que tinha o nome de Aconitum Ferox, raramente usado, mas que me lembrava as poções mágicas das estórias de bruxas e feiticeiros.

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Mas meu avô não tinha nada de feiticeiro. Ele passava horas debruçado à mesa da cozinha, preparando poções, para atender mulheres e crianças doentes que chegavam, reclamando de males e achaques os mais diversos.
Quase sempre eram doenças comuns, que não justificavam a longa viagem até Tapes. O avô não cobrava nada, pedia apenas que viessem com um frasco limpo e transparente, que enchia com a água fresca da cacimba, para então dosar, gota a gota, os preparados de seus preciosos vidrinhos.
As pessoas se mostravam agradecidas e, depois de curadas, voltavam com modestos mimos - mel de eucalipto, lombo de leitão assado ou uma braçada de flores do campo. Meu avô se enternecia e murmurava baixinho:
"- Não carecia de se incomodar, minha filha, não carecia?".
Quando a velhice bateu à porta, o médico o proibiu de fazer o que mais o regalava - andar a cavalo e pastorear os rebanhos. Então, passou a dedicar todo o tempo a atender os pacientes, cada vez mais numerosos. Agora, já eram os filhos e enteados dos pais e mães curados pelos vidrinhos da caixinha de madeira.
Finalmente, chegou o dia em que era preciso repor as poções mais usadas. Os parentes que viajavam a Porto Alegre recebiam listas com o nome das poções que escasseavam. Mas, as encomendas nem sempre chegavam a tempo e os pacientes não podiam ser atendidos como antes.
Certa vez, senti a preocupação de minha mãe, enquanto via o avô procurar, por determinada poção que já havia terminado. O Coronel Patrício estava com 90 anos e era teimoso demais para cuidar de sua própria saúde. Foi quando me contaram que a avó Ana Augusta, angustiada com a situação, dispensava às escondidas os pacientes que chegavam. A conspiração não iludiu meu avô por muito tempo. Ele notou o corredor da casa sem ninguém e despachou peões às casas dos agregados e vizinhos, para saber notícias de seus pacientes.

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Naquele ano, quando regressamos a Porto Alegre, percebi minha mãe muito acabrunhada. Ela nos abraçou - a mim e a minha irmã - avisando que talvez não encontrássemos o avô vivo, no próximo verão. Mas ele enganou a todos, desmentiu os médicos e viveu por mais três anos. Enquanto isso, sem que ele desconfiasse, nas horas quietas da tarde, minha avó Ana Augusta preenchia com água da cacimba os vidrinhos vazios da caixa de madeira.
E, durante muito tempo, as poções do Coronel Patrício continuaram curando males verdadeiros e achaques imaginários.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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