Paisagem da janela de uma Porto Alegre triste

Por Márcia Martins

Da janela lateral do quarto de dormir, vejo uma academia em funcionamento, uma parada de ônibus quase vazia, um muro pichado e uma obra em construção em atividade. Mensageira natural de coisas nada naturais, eu não queria falar dessas cores mórbidas, menos ainda destas pessoas sórdidas. Mas o início da música "Paisagem da Janela", de Fernando Brant e Lô Borges, com pequenas adaptações para a realidade de um Brasil com pandemia é um retrato do que eu deveria ver na rua onde moro no bairro Cidade Baixa, se os negacionistas (tanto autoridades como cidadãos) não estivessem dominando Porto Alegre.

No entanto, parece que está tudo normal. E quando eu falo desse temporal (é da música também), o prefeito e a população de Porto Alegre não escutaram. É como se não existisse a Covid-19, desde 24 de março de 2020, quando ocorreu a confirmação da primeira morte na capital gaúcha de uma mulher com 91 anos. Parece que não consideramos a dor de mais de 3.200 mortos e mortas em Porto Alegre em decorrência do Coronavírus. E nem acreditamos que a cidade teve, na terça-feira (13), 99% de lotação de UTIs e 98 pessoas em fila de espera por leitos. 

Uma decisão política e que demonstrasse mais preocupação com a vida do que com a economia poderia, em um lockdown de uns 20 dias, atenuar ou até reverter estes números nefastos e fúnebres. Mas daí é necessário que o prefeito se preocupe mais com a vida dos habitantes de Porto Alegre do que com a retirada de placas irregulares de propagandas penduradas em postes, com um alicate que ele carrega "ocasionalmente" no seu carro. E toda a operação é realizada sem o uso de máscaras (e para quê não é mesmo?). Sob o aplauso da mídia que entende este ato ser motivo de manchete.

Aliás, é preciso ser coerente. Em seu discurso de posse, no dia 1° de janeiro de 2021, o prefeito Sebastião Melo prometeu que embelezaria a cidade e que daria atenção especial à estética da cidade. Segundo informou GaúchaZH, no dia 13 de janeiro, a ideia do novo administrador era "florir as cidades, por meio de parcerias com as floriculturas". Ele só não especificou como Porto Alegre ficaria mais florida. Até o momento, pelo pouco que tem sido feito na cidade, a capital gaúcha está repleta de coroas de flores para funerais. 

E a economia segue no seu ritmo normal. Mesmo que muitas atividades tenham sido fechadas, ou por prejuízo, ou pela morte de seus proprietários ou porque os doentes de Covid-19 não saem de casa ou dos hospitais para adquirir roupas, calçados e novos perfumes. Nem pijamas são necessários porque nas UTIs essas vestimentas não entram. O que se vê, muitas vezes, das janelas laterais de dentro da casa dos confinados, é uma Porto Alegre triste que chora a morte de seus moradores e suas moradoras. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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