Quando esquecemos que somos ainda seres humanos?

Por Márcia Martins

Não quero parecer uma pessoa extremamente pessimista ou alarmista, daquelas que exigem distância para preservar a sanidade mental de quem está ao meu redor. Até porque 2023 se iniciou com a promessa de um cenário diferente para os brasileiros e brasileiras que amargaram um desgoverno de 2019 a 2022. Com o presidente Lula, na sua posse, subindo a rampa do Planalto com a representação de segmentos de vítimas de discriminação e invisibilidade (indígenas, negros, deficientes, mulheres e uma catadora de lixo). Mas, alguns fatos deste janeiro me intrigam sobre a nossa percepção de humanidade.

Os atos de 8 de janeiro, em Brasília, quando bolsonaristas radicais desafiaram a democracia com aquelas cenas terroristas, foi apenas o estopim desta minha perplexidade. Muito já foi escrito aqui no portal sobre tais bandidos, insanos, baderneiros e fanáticos que invadiram os prédios do Palácio do Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, toda vez que revejo, até mesmo por dever de ofício (ainda que aposentada), algum daqueles "cidadãos de bem" destruindo tudo e filmando, sou tomada de um sentimento de que algo deu muito errado aqui no Brasil.

E fico pensando cá com meus botões. Quando esquecemos que somos ainda seres humanos? Em qual esquina despachamos, como algo desnecessário, o nosso senso de compaixão? Em que fase da nossa vida, como um passe de mágica, perdemos a empatia com o semelhante que não usufrui das mesmas condições de sobrevivência que nós? Onde está determinado que os corpos das mulheres devem ser objetificados e sujeitos à violência de todo o tipo? E em qual sociedade, uma pessoa que se classifica como ser humano, deseja e faz enquete sobre a morte de outro?

Por isso, fiquei estarrecida com a tragédia humanitária do povo Yanomami, em Roraima, que resultou na morte de cerca de 570 crianças (além de adultos), por fome, desnutrição e malária (entre outras doenças tratáveis, quando existe um governo responsável). E minha fé na humanidade diminuiu um pouco ao ver que a "namoradinha" do Brasil ironizou a situação de calamidade dos indígenas, denunciada mais de uma vez ao governo Bolsonaro, sem nenhuma providência. "A infância desamparada dos Ianomâmis - sim, ela escreveu assim - uma gente criada à base de mandioca, feijão, verduras e peixe", disse Regina Duarte em suas redes sociais.

E quando penso que ainda é possível crer no lado humano das pessoas, vejo nas redes sociais pessoas criticando a moça de 23 anos estuprada pelo jogador de futebol brasileiro, Daniel Alves, no final de dezembro, dentro de uma boate, em Barcelona (tema da coluna da semana anterior). Ela apresentou exames, não pediu um centavo, foi atendida pelo controle de segurança de violências sexuais do local, e alguns alegam que ela só denunciou pra ganhar fama e dinheiro. Somado a esse absurdo, impera um silêncio constrangedor no meio futebolístico de colegas de Daniel sobre o caso. A cultura do estupro sendo alimentada.

Para piorar meu descrédito na humanidade no Brasil, um dos jogadores de vôlei mais importantes do País nas últimas décadas, Wallace de Souza, postou uma enquete no seu Instagram questionando quem daria um tiro na cara de Lula com uma espingarda calibre 12. E abriu uma caixinha de comentários para ver o andamento da enquete. O time no qual Wallace jogava, Sada Cruzeiro, anunciou o seu afastamento em decorrência da incitação à violência contra o presidente. Bolsonarista declarado, ele já havia, em fotos pela Seleção Masculina de Vôlei, feito arminha e mostrado os números para eleger o ex-presidente. Mas desejar e estimular a morte de alguém, sinceramente, passou de todos os limites.

E a pergunta segue martelando na minha cabeça: quando esquecemos que somos ainda seres humanos?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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