Raios e trovões

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Não conheço vantagem em separar coisas 

reais das coisas irreais e dar rótulos a elas".

 

T. S. Eliot.

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Lembro que o velho Edu, sempre que ameaçava uma tempestade, costumava invocar Santa Bárbara e São Jerônimo em voz alta. E permanecia quieto em seu canto, enquanto raios iluminavam  o horizonte e trovões retumbavam pelos campos. Mais tarde, ele justificaria as invocações, alegando que era preciso proteger a casa e as pessoas contra os espíritos do mal que chegavam com  a trovoada.

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Passados dois dias, em uma manhã sem nuvens, lá estava ele, bem sentado no banco do terreiro e olhando para o azul do céu. Cheguei perto e provoquei:

"- Bom Dia, estamos procurando anjos no céu?"

Ele riu, condescendente. Apontou para o alto e afirmou que nem todos os anjos moram no Céu, nem todos os demônios moram no Inferno. E acrescentou, em tom sério:

"- Muitos deles habitam entre nós. Mas não é sempre que se mostram".

Devo ter feito uma cara de não-entendi-nada, porque ele anunciou, apontando o banco ao lado:

"- Senta aí, que vais ouvir uma estória de anjos e demônios. Esta é uma estória que aconteceu de verdade". 

Começou contando que os primeiros habitantes da região foram os índios charrua que vieram do Sul, navegando pelo Mar de Dentro, que era o nome antigo da Lagoa dos Patos. Alguns deles aportaram em uma ilha chamada Feitoria, onde existia uma colônia de pescadores: 

" Quando desembarcaram foram aprisionados pelos pescadores que pretendiam vendê-los como escravos. Acorrentaram os índios nas argolas de ferro chumbadas nas grandes pedras da Praia do Tigre, onde existe hoje o Farol de Itapuã".

Edu fez uma pausa para reacender o palheiro que havia se apagado. 

"Mas acontece que os marinheiros resolveram sair em pescaria na Lagoa e esqueceram dos índios acorrentados. Foi quando chegou uma forte ventania, fazendo as águas subirem, ameaçando afogar os prisioneiros. Então o céu escureceu e desabou a trovoada. Então, um dos índios levantou a voz para o alto, invocando a ajuda da deusa Acuab, a cacique dos charruas que os havia libertado no Uruguai . 

Conta-se que naquele momento, se viu uma mulher vestida de branco que caminhava pela praia sem deixar pegadas na areia. Ela chegou junto dos charruas, as correntes se soltaram e eles ficaram livres. Assustados, correram para longe e se abrigaram debaixo de uma grande figueira. Como sentiram frio, acenderam uma fogueira para se aquecer.                              Mesmo debaixo de chuva, a fogueira não se apagava.

No dia seguinte, embarcaram em suas canoas e fugiram para o sul - e nunca mais foram vistos. Quanto aos pescadores, seu barco naufragou na tempestade e seus corpos vieram dar na Praia do Tigre, não muito longe das pedras onde os charruas haviam sido acorrentados".

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pescadores mais velhos diziam que as redes de pegar traíra ficavam presas nas ponteiras de ferro cravadas no fundo da lagoa.

Eram cruzes de um antigo cemitério de marinheiros, que afundou na areia, sumindo para sempre.

Mais uma parada. Acendeu o cigarro apagado. E mais uma baforada e mais uma estória.

"- Este causo é muito falado em Tapes e qualquer pessoa pode te comprovar que não é invenção minha.

São as tais argolas de ferro que estão chumbadas em grandes pedras da Praia do Tigre, bem antes do Farol de Itapuã.

Estão lá pelo menos há uns 100 anos, mas ninguém se arrisca a dizer quem as chumbou na pedra e para o que serviam.

Os marinheiros dizem que as argolas prendiam uma corrente que fechava a foz do Guaíba para impedir a passagem dos navios imperiais que vinham atacar Porto Alegre durante a Guerra dos Farrapos. Mas tem gente que garante que as argolas foram feitas para castigar escravo fugido. Que era acorrentado nas pedras para morrer afogado na maré alta."

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Edu viu que eu não estava nem um pouco assustado com suas estórias. Jogou fora o cigarro e ia começar mais uma. Foi quando eu o interrompi, perguntando do ouro e das pratarias da minha tataravó Doña Brigida de Calderón, que foram enterrados nos areais da Lagoa e que nunca mais foram encontrados.

Edu ficou sério, pigarreou e disse que as estórias de fantasmas ficavam para outro dia. Levantou-se e foi para o lado dos galpões.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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