Rebola, cachorra, rebola

Por volta do ano 2.669 D.C. (o ano da Besta), a humanidade desapareceu da face da Terra por conta do Armagedon. O Irã entendeu …

Por volta do ano 2.669 D.C. (o ano da Besta), a humanidade desapareceu da face da Terra por conta do Armagedon. O Irã entendeu que deveria "purificar" o planeta e deflagrou uma tempestade de mísseis com ogivas nucleares que, depois, degenerou para uma guerra de todos contra todos. Já era, como se diz na favela do Alemão.
Mas, junto com as baratas, sobreviveu um casal, Adão e Eva. No entanto, qualquer relação com os nomes bíblicos é mera coincidência e, seja como for, os nomes são irrelevantes para o contexto desta narrativa. O fato é que o casal se reproduziu como coelhos e povou a Terra novamente. Avante.
Agora, estamos no ano Um Bilhão D.C., a nova humanidade é um bilhão de vezes mais civilizada do que a velha humanidade. Dotada de uma inteligência tão avançada que podiam falar até por pensamento. Eram tão inteligentes que utilizavam um vocabulário simples, para dizer tudo com simplicidade. Contudo, pairava um mistério insondável sobre a nova humanidade. Eles possuíam pistas ralas e insuficientes sobre a velha humanidade. O Armagedon teria pulverizado todos os registros da passagem do homem velho sobre a face da Terra.
Um belo dia, um grupo de antropólogos (da nova humanidade) descobriu no fundo de uma caverna uma edificação com grossas paredes de aço e concreto e, no seu interior, uma cápsula do tempo. Um cilindro em que o homem da velha humanidade depositou documentos, DVDs e CDs. Uma vez abertos, os documentos nada revelaram, pois aquela era uma linguagem totalmente desconhecida. O que fazer? Consultaram os arquivos mais antigos, mas estes só recuavam até o ano 500 mil D.C. Sem se darem por vencidos, pinçaram as palavras mais complexas, e de significado misterioso para eles, e as submeteram ao mais avançado e poderoso computador. Então, o supercomputador - de tecnologia absurdamente avançada - respondeu o seguinte: estas palavras, mesmo em sua época, não significavam nada.
As palavras eram "otimizar", "visando agregar valor", estratégias "holísticas" e "Proposta prepositiva"e "Gestão Integrada dos Ativos indolentes".
Outros arquivos gravados revelaram programas de TV a cabo e como eram transmitidos em suas respectivas programações. Os espectadores da nova humanidade ficaram encantados com alguns dos programas, mas não entenderam, e até se frustraram, porque, no momento em que o programa tornava-se mais interessante, súbito era interrompido pela propaganda do canal. As propagandas eram repetidas a exaustão, em geral, com um texto fraquinho, lido por um locutor estiloso de uma tal de Netgeo, ou do de um tal de Discovery Chanel.
Viram também a propaganda russa da Net e, mais tarde, por meios dos documentos, souberam que a propaganda de um certo coronel russo foi feita para encantar brasileiros de um país tropical. Perguntaram novamente ao supercomputador o porquê daquele complexo mistério: - Porque eram burros e tiveram a sorte de não terem concorrentes - respondeu o computador ma-humorado.
A Organização das Nações Unidas elegeu o Brasil, por ser um país muito musical e alegre, para ser a nação que iria depositar no cilindro os arquivos musicais da humanidade. Os antropólogos da nova humanidade, curiosíssimos, encontraram um equipamento pronto para reproduzir as músicas. O Brasil mandou autores e as músicas de maior sucesso, as mais tocadas nas rádios brasileiras. A lista e os sucessos ouvidos pelos cientistas da nova humanidade eram compostos por Tati Quebra-Barraco, o pagode de Netinho de Paula, Latino e Kelly Key, o roque de Supla, uma extensa lista de sertanejos e do batidão do funk carioca.
Os cientistas antropólogos da nova humanidade passaram a ter reações estranhas, como náusea seguida de vômito irrefreável, outros ficaram cobertos por brotoejas e vermelhidão severa. Mas quando ouviram o refrão de uma das músicas gritar: "Rebola, cachorra/rebola", trôpegos, cobertos de suor pegajoso e com mal-estar generalizado, correram novamente para o supercomputador.  Mas, desta vez, este se calou e manteve-se num silêncio imutável e perturbador. Segundo relatos posteriores, silêncio este só comparável em densidade explosiva com os segundos que antecederam ao Big Bang.

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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