Um abecê do jornalismo

Por Fraga

03/09/2019 17:04

Abordagem ? Para contornar a mesmice, há sempre um ângulo menos óbvio de encarar cada assunto. O resto é falta de assunto.

Admiração ? É o máximo que um jornal deve aspirar merecer de seus leitores. O mínimo é respeito.

Análise ? A interpretação dos fatos mostra o quanto um jornal entende a realidade por trás deles. Se não sabe fazer, então é o jornal que tem de ser analisado.

Anúncio ? Existe para vender coisas ao leitores, não para comprar o jornal em que é publicado.

Apuração ? O fundo não é onde termina uma reportagem. É onde ela começa.

Artigo ? Texto conciso que se concentra em determinado tema. Pelo mérito, pode ser artigo de primeira necessidade ou artigo supérfluo.

Aspas ? Seu uso esclarece indefinições, incertezas, ironias. Assim como quando se escreve ?jornal?.

Assunto ? Cabe tudo num jornal. Se sistematicamente ele evita tocar em certas pautas, aí não tem cabimento.

Bravura ? Como nenhum jornal é obrigado a ser combativo, ser corajoso por ofício já basta.

Cabeçalho ? É a parte superior da página, tão significativa quanto a parte inferior, o rodapé.

Caderno ? De economia, de cultura, de esportes, de saúde, de tv, de fim de semana etc. O jornalismo encadernado.

Capa ? A primeira página sempre diz a que veio o jornal. Se não diz claramente é porque o jornal não está nem aí.

Caricatura ? Retrato com traços exagerados de personagens do noticiário. Acentua a disposição crítica de um jornal.

Censura ? Em qualquer jornal, pior que ela, só a autocensura.

Charge ? Desenho editorial que comenta criticamente fatos locais, nacionais, mundiais. É um clichê e pura verdade: cada jornal tem o chargista que merece.

Circulação ? É o meio, amplo ou restrito, onde o jornal é lido. A mais gratificante talvez seja a de mão em mão.

Clareza ? Quase tudo na vida faz sentido. Nenhum jornal pode atrapalhar a compreensão básica.

Cobertura ? Abrangência editorial. Se o jornal não for abrangente, é indigente.

Coerência ? Dizer, desdizer, contradizer: eis os sinais expressivos dos jornais inexpressivos.

Colunista ? Quando o colaborador tem luz própria, sua coluna pode virar um pilar.

Comunicação ? Se um jornal não se comunica, ele se trumbica, seja em Cumbica ou Itapecerica.

Concisão ? Dizer mais com menos, sem mais ou menos.

Consistência ? Ao se espremer um jornal, atenção: se restar apenas celulose e tinta, é inconsistente.

Conteúdo ? Tudo que recheia os jornais, inclusive aqueles que são ocos.

Contexto ? Crucial na leitura, até mesmo pro leitor se situar em que desinformação se meteu.

Copidescagem ? Quando o texto já nasce bem escrito, não há o que copidescar; quando for necessário, que não pareça copidescado.

Credibilidade ? Até para enrolar peixe jornal tem que ter crédito, senão o peixe, o peixeiro e a peixaria ficam mal.

Critério ? A peneira entre o aproveitável e o descartável, o publicável e o impublicável. Quanto menor o furinho, mais criterioso o jornal.

Crônica ? Texto leve, gracioso, atemporal, sem fins informativos.

Data ? Como diz Luis Fernando Verissimo, às vezes é a única coisa verdadeira num jornal.

Denúncia ? Doa a quem doer em toda investigação: não pode existir anestesista numa redação.

Diagramação ? Além do bom design ampliar o prazer de folhear, ninguém se perde em jornal bem arrumado.

Edição ? A tarefa de reunir e espalhar as matérias, de harmonizar ou contrastar o conteúdo. Cada jornal tem sua fórmula, alguns até formulários.

Editor ? Jornalista que decide o que vai entrar ou ficar fora da edição do jornal. Uma porta giratória de mão dupla.

Editoria ? Cada um dos setores que, bem ou mal, um jornal cobre.

Editorial ? É a manifestação mais representativa do pensamento do jornal. A depender dos interesses, tanto pode defender o indefensável como atacar o inatacável.

Entrelinhas ? O inevitável espaço onde emerge muito do que não foi dito. Não podem, evidentemente, exceder o número de linhas.

Entrevista ? Das grandes atrações que um jornal pode trazer. Se as perguntas forem mais curtas que as respostas, já se configura uma surpresa jornalística.

Equilíbrio ? Um jornal equilibrado resiste até a pilhas de exemplares malfeitas.

Ética ? O problema do Brasil não é a falta dela, é o excesso: cada brasileiro tem a sua. Sem falar nos jornais antiéticos.

Exemplar ? Cada um dos jornais avulsos, embora nem todos sejam exemplares.

Extra Classe ? Jornal do Sinpro/RS, principal objeto deste livro. Inspiração maior de todos os elogios deste texto, diretos ou indiretos.

Fato ? Ocorrência do dia a dia, com ou sem b.o. O contrário do fato é a ficção, recurso jornalístico até em jornalões.

Foco ? Nenhum jornal pode ser dispersivo ao tratar um assunto. A não ser sobre a dispersão no carnaval da Sapucaí.

Fontes ? Sem elas, a veracidade dos fatos vai pra Cucuia; sem preservá-las, a Cucuia vem pro jornalismo.

Foto ? Sua aplicação tem a finalidade de enriquecer o conteúdo, jamais a de tornar o jornal fotogênico.

Grifo ? Serve para destacar detalhes nos textos, através do negrito e do itálico. A serventia é mínima mas funcional.

Humor ? Contribui para o jornal contrabalançar pautas sérias, graves, trágicas. Um humorista ou um cartunista em cada jornal deixa os leitores com a página nas orelhas.

Ilustração ? Costuma-se utilizar para arejar espaços, enriquecer matérias, surpreender o olhar. Bonito costume.

Imparcialidade ? Se o mundo fosse justo, o jornalismo imparcial não seria incômodo.

Imprensa ? Vulgo Quarto Poder, que os outros três poderes insistem em vulgarizar.

Impressão ? A pior é quando falha o registro na rotativa; a melhor é quando alguém recomenda o jornal a outrem.

Independência ? Independente mesmo, só o jornalismo anuro ? o mais difícil de ter o rabo preso.

Informação ? Vai da útil à inútil, algo suficiente para abastecer todos os jornais do planeta.

Jornais ? São depósitos concentrados do cotidiano. Até mesmo um minúsculo jornal pode constituir o patrimônio retrospectivo de uma época, região, sociedade.

Jornalista ? Profissional em extinção. Precisa ser preservado a qualquer custo, quer dizer, bons salários.

Legenda ? Algumas vezes são dispensáveis, noutras vezes o dispensável é o encarregado de legendar.

Legibilidade ? Um jornal ilegível um bom designer tira de letra.

Leitor ? Salvo alguma vida inteligente extraterrestre, para os jornais é o ser mais importante do universo.

Linguagem ? Uma ponte entre os jornais coloquiais e os leitores; entre os jornais sisudos e os leitores, um abismo.

Manchete ? Antigamente atraía aos berros. Hoje chama a atenção pela falta do que dizer.

Matéria ? A oportunidade que os fatos têm de se tornarem memoráveis. Ou esquecíveis.

Missão ? É o oposto de omissão, e um bom jornal precisa se precaver para não cair em nenhuma das duas.

Notícia ? Além das boas e más, existem as melhores e as piores: aquelas bem tratadas e aquelas mal escritas.

Objetividade ? Textos objetivos geralmente são lineares, o que obriga a informação a andar na linha.

Olho ? Texto mínimo destacado entre os blocos informativos. Se piscar para o leitor, fica perfeito.

Opinião ? Essencial a qualquer jornal, desde que não seja sistematicamente opinativa.

Página ? Cada uma das folhas do jornal. E apesar de serem únicas, todas acabam do mesmo jeito: página virada.

Pauta ? Rol de assuntos que disputam espaço na próxima edição do jornal. Uma expectativa ronda a reunião: o inesperado costuma furar a fila.

Penetração ? Como mídia, a maioria dos jornais vai longe. Como veículo social, uma minoria vai muito além.

Periodicidade ? Não importa se é diário, semanário ou mensário. O importante é que seja pontual.

Posicionamento ? Há jornais em cima do muro, atrás do muro, na frente do muro, ao lado do muro. Há jornais que moram no muro, outros locam o muro, alguns zelam pelo muro, sem esquecer os donos do muro. Há jornais que preferem muretas enquanto outros estão a fim de muralhas. E, claro, há jornais muito acima do muro.

Postura ? Todo jornal que se curva fica com o seu na reta.

Público-alvo ? Quem tem público-alvo é a indústria de armas. Jornal tem leitores.

Precisão ? Seu sinônimo, difícil de conseguir, é exatidão; seu antônimo, fácil de obter, é confusão.

Princípios ? Dá para fazer mídia só com meios e fins. Não dá é para chamar de jornal.

Profundidade ? O ideal é que o jornal se proponha tão profundo que ouse afirmar isso num slogan, tipo Jornalismo além da superfície.

Quadrinhos ? Humor em tiras que divertem e fazem pensar o leitor de jornal, sobretudo se forem de artistas brasileiros.

Redação ? Conjunto de várias capacidades jornalísticas num mesmo lugar. Por exemplo: na Av. João Pessoa, 919.

Redator ? Escreve certo por rascunhos tortos. Condensa, aumenta, resume, reescreve, reduz. E conduz rebanhos de milhares de palavras até o abatedouro do ponto final.

Relevância ? É o aspecto menos palpável num jornal. Mas é justamente onde os leitores exigentes mais se agarram.

Reportagem ? A suprema criação do jornalismo. Demanda tempo, trabalho, talento ? coisas comuns num bom jornal.

Repórter ? É a alma de um jornal, o que não impede haver jornais desalmados.

Responsabilidade ? A lei exige que todo jornal tenha um jornalista responsável. O leitor espera que a redação inteira seja.

Reticências ? Mesmo que jamais use os três sinaizinhos, ainda assim todo jornal tem de evitar ser reticente.

Revisão ? Se errar é humano, revisar é profissionalismo.

Rodapé ? É a parte inferior da página, tão significativa quanto a parte superior, o cabeçalho.

Seção ? Por menor que seja, completa o jornal. Se for demasiado grande, complica o jornal ? vide seção comercial.

Sensacionalismo ? O cérebro fica atrás das glândulas lacrimais. Para alcançá-lo, o jornal tem que desviar delas.

Serviço ? Um jornal pode ser prestativo mesmo que não queira: ele tem a função de publicar releases de utilidade pública.

Subtítulo ? Está para o título assim como o garçom está para o chef.

Tabloide ? Formato reduzido de muitos jornais, inclusive de alguns que não se apequenam.

Tendência ? A questão não é se um jornal é tendenciosamente de direita, de centro ou de esquerda. A questão é se ele é ou não é democrático.

Tipografia ? O conjunto de fontes utilizado para compor o jornal. Bem usado, dá personalidade a ele; mal usado, tira.

Tiragem ? Total de exemplares impressos. Ajuda a definir o porte de um jornal, não a sua grandeza.

Título ? Pequena frase que antecede as matérias. Através dele se percebe se um jornal é interessante ou interesseiro.

Transparência ? Papel jornal é opaco mas conforme o que se escreve nele, pode se tornar cristalino.

Valor ? Um jornal vale tanto quanto aquilo que pratica. Sem nada a ver com o preço de capa.

Verdade ? Como metáfora, é inatingível; como jornalismo, é inescapável. Ponto final.

(Texto criado especialmente para o livro Extra Classe 20 Anos, lançado em março de 2016 pelo Sinpro-RS em comemoração à data. Pela primeira vez é publicado na web, com exclusividade aqui no Coletiva. Resolvi publicá-lo depois que vi a aula que Glenn Greenvald deu a jornalistas despreparados, no programa Roda Viva de 2/9)