Um grande passo para o homem

Por Roger Lerina

A conquista da Lua seduz o cinema desde sempre. Do clássico ingênuo 'Viagem à Lua' (1902) ao recente drama biográfico 'Estrelas Além do Tempo' (2016) - passando por títulos como 'Os Eleitos: Onde o Futuro Começa' (1983) e 'Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo' (1995) -, a sétima arte tenta levar os espectadores literalmente às estrelas, envolvendo-nos com as histórias e os sonhos da descoberta de novos mundos. A mais recente obra a convidar o público a olhar para cima e imaginar-se lá no alto é 'O Primeiro Homem' (2018), longa que entrou em cartaz nesta semana. No entanto, diferentemente da esmagadora maioria de produções sobre a conquista do espaço, o novo filme do diretor Damien Chazelle abdica do protagonismo do tom épico para destacar a dimensão humana dos dramas, desejos, dúvidas e sentimentos dos homens e mulheres envolvidos na quase inacreditável saga da primeira viagem tripulada à Lua.

Ganhador do Oscar de melhor direção pelo ótimo 'La La Land: Cantando Estações' (2016), Chazelle volta a trabalhar em 'O Primeiro Homem' com Ryan Gosling: o ator canadense, vencedor do Globo de Ouro por seu papel naquele musical, encarna agora Neil Armstrong, astronauta que liderou a missão ao satélite natural da Terra e notabilizou-se como o primeiro humano a pisar na superfície lunar. Baseado no livro de James R. Hansen, o drama tem roteiro de Josh Singer, oscarizado por 'Spotlight - Segredos Revelados' (2015). A história concentra-se no período de 1961 a 1969, terminando no ano em que os Estados Unidos enfim conseguiram chegar à Lua, passando à frente da URSS na corrida espacial - depois de mais de uma década de tentativas frustradas de superar os soviéticos no campo de batalha cósmico da Guerra Fria.

'O Primeiro Homem' coloca uma lupa na vida de Neil Armstrong, apresentando o escopo pessoal da vida do protagonista como contraponto à grandiosa narrativa dos avanços científicos e tecnológicos e das articulações políticas por trás de um dos mais fabulosos avanços da humanidade. Em paralelo à trajetória profissional de Armstrong - mostrada desde os primeiros tempos como piloto civil de testes aeronáuticos até a promoção a astronauta chefe de missões espaciais da Nasa -, a trama acompanha o cotidiano do personagem, um típico norte-americano branco médio. A existência doméstica de Armstrong, sujeito calado cuja introspecção torna-se ainda maior depois que a filha pequena morre de uma doença rara, é exibida quase como se fosse um filme caseiro. A fotografia, aliás, é um dos muitos acertos de 'O Primeiro Homem': a imagem instável e tremida, registrada muitas vezes com a câmera no ombro, de cores chapadas e granulação estourada, seguidamente fechada em close no rosto dos personagens, remete às antigas filmagens em Super 8, ao mesmo tempo amadoras e íntimas.

O enredo coloca o tempo todo lado a lado os dois fronts enfrentados pelo herói: o desafio praticamente suicida de vencer os obstáculos quase intransponíveis até a chegada à Lua e a luta diária para manter o tenso casamento com Janet (Claire Foy, a rainha Elizabeth II da série 'The Crown') e ainda ser uma figura paterna estável para os filhos. Mesmo que não perca o foco em seu objetivo primeiro - contar como os norte-americanos chegaram à Lua -, em nenhum momento de 'O Primeiro Homem' deixa a História coletiva solapar o relato individual. Para garantir que ambas as perspectivas atinjam o mesmo êxito narrativo e uma não diminua o impacto dramático da outra, o realizador Damien Chazelle maneja com inteligência e sensibilidade vários recursos cinematográficos.

Um dos mais notáveis é a utilização expressiva da trilha sonora e, especialmente, do som - habilidade que o cineasta já havia exibido em 'La La Land' e com particular impacto em 'Whiplash: Em Busca da Perfeição' (2014). Desde o começo de 'O Primeiro Homem', quando Armstrong tangencia temerariamente a estratosfera pilotando um jato, até as vésperas da missão Apollo 11, todas as cenas de lançamento e voo são acompanhadas por uma barulheira mecânica angustiante e ensurdecedora, que sublinha o caráter precário e de tecnologia primitiva desses testes pioneiros. Envolvidos pelo som que se espalha pela sala de projeção, os espectadores são jogados ao lado dos pilotos e astronautas para dentro das claustrofóbicas cabines onde ficavam perigosamente à mercê de todo tipo de contratempo e acidente. Mais para o final, porém, o filme abraça totalmente o caráter grandioso do episódio histórico que aborda: a mudança começa com a execução de uma valsa - inequívoca citação ao clássico '2001: Uma Odisseia no Espaço' (1968) - depois de uma bem sucedida acoplagem em órbita e desemboca em uma exuberante trilha orquestral que ilustra toda a sequência da alunagem e da posterior volta a Terra. O efeito é arrebatador: depois de refutar quase todo o tempo a glamourização para valorizar o fator humano, 'O Primeiro Homem' enfim reconhece a solenidade do evento e concede soar uma música cuja pompa quase excessiva parece insinuar de contrabando um toque de ironia e crítica ao magnífico feito que deixou o mundo todo boquiaberto.

Tirando partido da interpretação contida de Ryan Gosling e harmonizando com rara felicidade as escalas histórica e pessoal de seu tema, 'O Primeiro Homem' é uma acertada tradução cinematográfica da célebre frase dita por Neil Armstrong ao pisar na Lua, que concilia o prosaico com o formidável: "Este é um pequeno passo para o homem, mas um enorme salto para a humanidade".

Assista ao trailer de 'O Primeiro Homem':

https://www.youtube.com/watch?v=hfAB8y5ZBwc&feature=youtu.be

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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