Um presente extraordinário

Por José Antonio Vieira da Cunha

15/01/2024 17:22
Um presente extraordinário

Obrigado, ARI, pelo presente. Ao promover semana passada uma homenagem ao jornalista Tarso de Castro, que faria 80 anos se não tivesse morrido cedo, em 1991, a Associação Riograndense de Imprensa abriu link para o documentário 'A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro'. Mais do que a homenagem ao ilustre passo-fundense, o documentário revela momentos e passagens da imprensa brasileira naquele período conturbado entre 1965 e 1985.

'O Pasquim', suas aventuras e personagens estão presentes em boa parte do documentário. Satírico e debochado, o semanário repercutiu como uma voz política de oposição graças à equipe que Tarso soube arregimentar. Nela se destacaram no início expoentes do jornalismo e do grafismo como Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral, Jaguar, Ziraldo e Luiz Carlos Maciel. Tantos talentos reunidos explicam por que, em certo momento, o nanico vendia 250 mil exemplares a cada semana.

O semanário foi um marco no jornalismo independente, pregando uma contracultura em que despontavam posicionamentos contra a ditadura, contra o moralismo da classe média e contra a grande imprensa. Era de uma administração anárquica, e por isso cada edição parecia fruto de um incrível milagre que colocava o jornal toda semana nas bancas

O documentário dirigido por Leo Garcia e Zeca Brito comete o pecado de não ouvir nenhum desafeto de Tarso - que os tinha, e não eram poucos. A falha é compensada pela competente direção de ambos, e a obra ainda é muito feliz ao pontuar alguns momentos com a recuperação de cenas de filmes como 'Todas as mulheres do mundo', resgatando imagens de uma jovem e bela Leila Diniz, ela mesma outra forte voz a romper preconceitos.

Tarso era quase um maluco-beleza daqueles anos. Bebia uísque diariamente, e certa vez Jô Soares se disse espantado por ele seguir nesta batida, mesmo tendo tido duas sérias crises de cirrose, doença da qual parecia recuperado. Era uma entrevista na televisão, e o gordo foi corrigido pelo entrevistado: "Não foi isso. Eu tive um coma, depois outro coma, e continuo com a cirrose".

Uma vez, ali no final dos anos setenta, Tarso e Jaguar foram a Porto Alegre participar de alguns movimentos da Feira do Livro. À tarde, levados por algum amigo comum, passaram o tempo todo na redação do Coojornal, redigindo seus textos para o Pasquim. Fizeram um único pedido: teríamos por acaso algum uísque? Caras sortudos: por aqueles dias havíamos recebido de presente duas garrafas do uísque Monkey, cuja qualidade nunca conseguimos atestar, já que os dois se encarregaram de, nas três a quatro horas de trabalho, derrubar o Monkey. As duas garrafas, bem entendido.

Ao registrar a trajetória do jornalista, 'A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro' ressalta a importância do jornalismo, pontuada com depoimentos de gente como Jaguar, Eric Nepomuceno, José Trajano, Sérgio Cabral e os gaúchos Luiz Carlos Maciel, Carlos Bastos e Flávio Tavares. Vale dedicar hora e meia a ele, também porque leva muitas vezes a inevitáveis comparações com fatos atuais, especialmente ao provocar reflexões sobre o papel da mídia e a liberdade de expressão e de manifestação. Por isso também, obrigado, ARI.

Documentário conta a história do jornalista Tarso de Castro, idealizador do jornal satírico O Pasquim

 

Coluna publicada originalmente em 03/09/2021