Uma pequena história da propaganda gaúcha (2)

Por Marino Boeira

Um dado interessante para quem gosta de identificar as raízes de certos comportamentos, é que o surgimento do planejamento como uma ferramenta tecnologicamente correta em meio aos caos da criação, vai se dar no momento da consolidação dos planejadores econômicos (Delfim Neto e Mário Henrique Simonsen) como os grandes guias dos governos militares depois do golpe de 64, quando o governo de João Goulart foi posto abaixo por uma espúria aliança entre os interesses norte-americanos e as velhas elites brasileiras. Naqueles dias, parecia que tudo estava sendo planejado para criar um novo país, onde não haveria mais espaço para a divergência ou para a contestação. Usando de uma licença poética, talvez pouca eficiente nessa analogia, seria possível identificar o planejamento publicitário com o espírito autoritário e organizador da nova classe dirigente do Brasil, sobrando para a criação a semelhança com o confuso mundo libertário da esquerda derrotada politicamente em 64.

Fiel ao lema positivista da nossa bandeira - Ordem e Progresso - os militares que durante 20 anos comandaram a vida do país, olhavam a propaganda apenas como um instrumento destinado a promover entre os brasileiros um sentimento permanente de ufanismo pelo que imaginavam ser o futuro de uma grande potência que nascia.  Enquanto esse projeto não se transformou numa formidável crise econômica e social, a face imaginária de "uma ilha de prosperidade em meio a um mar de dificuldades", foi "vendida" com sucesso aos brasileiros usando as armas da propaganda. Éramos "90 milhões em ação" e quem não concordasse com esta falsa euforia, a porta da rua estava aberta, como diziam aqueles slogans, copiados de um modelo norte-americano e  exibidos nos automóveis da época; "Brasil - ame-o ou deixe-o".

Uma boa parte das modernas técnicas publicitárias foi usada pelos militares para uma verdadeira lavagem cerebral dos brasileiros, criando um país de fantasia invejado no mundo inteiro. mas que depois se viu, foi incapaz de resistir à primeira crise econômica internacional, quando os árabes resolveram defender o preço do seu petróleo.

Enquanto a discussão sobre temas muito mais sérios para o país era vetada pela censura, sobrava espaço para discutir quem tinha mais importância para o futuro das agências de propaganda: planejamento ou criação.

A censura vetava filmes, livros e músicas, mas pouco interferia na propaganda. Anunciantes e agências, nesse período negro da vida brasileira, em momento algum contestaram o status-quo vigente, até porque eram beneficiários dele.

A discussão sobre planejamento x criação não era prerrogativa apenas dos gaúchos. Em São Paulo, até seminário em hotel de luxo foi realizado colocando frente a frente os "inimigos" para debater a questão, obviamente com entrada paga para os interessados. Para posicionar um produto, ensinavam os planejadores, nada substituía uma boa pesquisa. A velha cartilha de Ogilvy, reunidas no seu livro "Confissões de um publicitário", com todos os mandamentos de como fazer um bom anúncio - "não usar a negação num título", "não ter medo de escrever laudas e laudas de texto se o produto exigir muitas informações", "dirigir o produto para o consumidor identificado no título - passava ser substituída pela informação que só a pesquisa - inicialmente apenas quantitativa, mas logo também qualitativa - poderia dar. A genial intuição de Ogilvy seria substituída pela técnica indiscutível da informação, pinçada numa pesquisa entre potenciais consumidores.

Enquanto ainda se discutia quem deveria pagar a pesquisa - a agência ou o anunciante - outra mudança mais radical estava acontecendo nas agências gaúchas. Os cursos superiores de formação de publicitários, que no início apenas carimbavam os currículos dos práticos licenciados, começaram a lançar no mercado os verdadeiros profissionais da propaganda. Nada de escritores e artistas plásticos em gestação no grande útero dos departamentos de criação. A nova geração nem gostava muito de escrever ou desenhar. Eram apenas fazedores de títulos e ilustrações, que a introdução quase na mesma época dos computadores nas agências, tornava uma atividade fácil e rápida. Era uma geração descompromissada com os utópicos ideais humanitários dos antigos publicitários e pronta para assumir, sem qualquer culpa, a face mais desumana da publicidade. Sobre este aspecto, ela era bem mais verdadeira que a geração anterior, sempre dividida entre um sentimento de culpa, por serem agentes de um consumismo nefasto para a maioria da população e as benesses que a profissão proporcionava. Na virada do século, essa geração, que já não era tão nova, vai dominar inteiramente o mercado publicitário do Rio Grande do Sul, empurrando os antigos profissionais para sessões de nostalgia com velhos camaradas, para lembrar "como era verde meu vale", ou para artigos cheios de fel como este. 

O certo é que os novos criativos chegaram um acordo com os planejadores, até porque todos haviam nascido no mesmo berço acadêmico. Os planejadores poderiam encomendar suas pesquisas, transformadas depois em grandes calhamaços,vendidos com pompa e circunstância para os clientes, mesmo que eles se limitassem a ler, quando muito, uma conclusão com as recomendações finais, enquanto os criativos estavam autorizados a continuar fazendo seus anúncios, o mais parecido possível com o que viam na revista Archive, ou mais modestamente no anuário do Clube de Criação de São Paulo. Ninguém poderia, porém, dizer que o posicionamento não estava correto, mesmo que o produto não vendesse, pois ele tinha sido cientificamente comprovado por uma pesquisa. As empresas de pesquisa se transformaram num bom negócio atraindo até mesmo gente de competência não muito acadêmica. Hoje, nenhuma agência que se preze deixa de recomendar aos seus clientes uma pesquisa prévia antes de por a mão na massa e produzir aquilo que é sua finalidade maior, um anúncio. Nada melhor do que saber previamente o que está na moda, do que é politicamente correto e colocar no anúncio uma frase ou uma imagem que reforce estes sentimentos. O risco deve ser zero, ou próximo disso, embora a opinião pública seja mais volúvel que o coração de uma mulher - la donna é móbile - como diz a letra da ópera. Mas não se deve duvidar do que dizem essas pesquisas, ainda que muitos dos seus relatórios finais seja uma leitura direta das falas de alguns consumidores, incluídos na categoria de "heavy user" de um produto ou serviço. Mesmo que desvinculados do contexto onde foram ditos e sem uma maior avaliação psicológica, eles têm a força de uma verdade cientificamente comprovada, pelos menos para quem precisa acreditar neles.

Quem pensa, todavia, que está tudo na mais santa paz, vai em breve ter uma boa surpresa. Um verdadeiro tsunami pode estar próximo a acontecer. Os anunciantes já perceberam que as frutas do quintal do vizinho são, às vezes, mais saborosas que as suas, mesmo que esteja usando o adubo certo e plantando de acordo com as boas normas e cobrarão de suas agências uma colheita mais abundante. Por que a gente não pode fazer um comercial igual aquele do garoto da Bombril, vão perguntar as suas agências? Talvez tenha sido pura sorte, muitas dirão em resposta, mas o certo é que quem fez o comercial acertou na mosca. Os instintos maternais das mulheres ficaram à flor da pele, loucas para proteger o garoto desamparado que fala das virtudes do Bombril, enquanto seus maridos, que pagavam a conta, não tiveram ciúmes. Então, vamos comprar a esponja de aço da Bombril. Qual foi a mágica? Quem deveria ter uma boa resposta seria a academia, que mal ou bem, existe para pensar a atividade publicitária, ao contrário da agência que está atrelada à sua função de fazer as coisas. A resposta, porém, não está nas disciplinas típicas da publicidade que dominam os currículos acadêmicos. Está mais na sociologia, na psicologia, na filosofia, banidas dos nossos cursos de propaganda em troca de um pratica que só repete o que já feito . Semestres inteiros são gastos para aulas de mídia e criação, que se repetem com nomes diferentes, mas sempre com os mesmos objetivos: repetir o que foi feito na prática das agências de propaganda, sem qualquer espírito crítico. O profissional do mercado publicitário, transformado em professor, repete para os alunos entediados as soluções que encontrou no dia-a-dia da sua profissão. Só quando, em vez disso, se der espaço para disciplinas que questionam o comportamento humano e por extensão dos consumidores, esse quadro sofrerá mudanças.

Serão as pessoas que dominam matérias como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia e a História, que estão mais preparados para dar as melhores respostas. Os publicitários poderão então, finalmente, irem para a casa, porque se tornaram tão obsoletos como aquele velho anúncio do Run Creosotado, na época em que os bondes ainda eram o melhor forma de se andar pelas cidades: "veja ilustra passageiro o belo tipo faceiro que você tem ao seu lado. No entanto, acredite, quase morreu de bronquite. Salvou-o, Run Creosotado".

Luís Augusto Cama disse uma vez:.

 "A fonte acadêmica brasileira é a escola de comunicação que - com algumas notáveis exceções em alguns centros - privilegia o profissionalizante, o "voltar-se para o mercado", refletindo o status quo e o conhecimento da profissão quando deveria antecipar-se a ele e levá-lo para diante; ensinando a fazer quando deveria ensinar a pensar, a superar e a fazer. Comunicadores, publicitários não devem ser especialistas ou ter formação meramente especialista. Eles e elas devem ser generalistas, "o homem da Renascença", que de tudo sabia e sabe, nas artes e nas ciências. Suas vidas diárias e a escola que freqüentam precisam refletir isso."   

Parodiando o serviço de alto falantes do Maracanã , que anunciava a substituição dos jogadores - "A ADEG informa: sai Zico, entra Pelé" - poderíamos também dizer: "A ADEG informa : sai um publicitário, entra um humanista (ou seja lá que nome dar a este novo personagem)".Nessa hora será bom lembrar a máxima de Napoleão Bonaparte - "a guerra é um assunto muito sério para deixar aos cuidados dos generais" - que posteriormente, quando os doutos economistas estavam levando o mundo inteiro à destruição com seus dogmas, alguém aproveitou para lembrar que "a economia é um assunto muito sério para deixar nas mãos dos economistas".  Logo, não faltarão também anunciantes mais informados e inteligentes para darem uma nova versão para a máxima do "Pequeno Caporal": "a publicidade é um assunto muito sério para entregar aos publicitários". Será então a hora dos "humanistas" entrarem em campo oferecendo soluções mais inteligentes para vender produtos ou serviços.Talvez eles possam vir até mesmo dos cursos de Publicidade e Propaganda, que muitos deles já se deram conta que não é apenas repetindo a prática diária das agências de propaganda que formarão publicitários inteligentes e criativos, mas certamente essa não será uma exigência definitiva.

 Quem viver, verá!.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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