Luis Fernando Verisimo ? Dívida veraz

Devo muito ao Verissimo, como escritor. Ele está entre os dez autores a quem mais devo. Mas não o culpem. Aprendi o que pude. …

17/10/2016 14:47 / Atualizado em 10/12/2016 11:26
Devo muito ao Verissimo, como escritor. Ele está entre os dez autores a quem mais devo. Mas não o culpem. Aprendi o que pude. Comecei a ler o Verissimo em 1972 ou 73, em meio a uma crise existencial cabeluda: tinha metido na cabeça que seria humorista. Quer dizer, devo ter começado a ler o Verissimo pelo humor de suas crônicas. Mas, logo descobri, a graça era apenas uma das virtudes literárias do homem: ele tinha tudo o que o bom senso exige nessa aventura de loucos varridos. Sim, clareza e precisão. Não chega? Inteligência. Verissimo é da turma do Robert Louis Stevenson: o inteligente que não ostenta a inteligência, que não se compraz em esfregá-la em nosso nariz. Mas tem mais: ele nunca faz literatura. Tem um teste simples pra descobrir isso. Leia um texto em voz alta. Se soar como se você tivesse uma batata na boca, é literatura. Ou se você começar a sentir comichões em locais remotos, a suar frio e a desejar que a terra se abra e você suma, pode crer, você está sob um ataque de beletrismo. Num país de bacharéis, escrever com naturalidade, sem dar mole pra pompa e pra frescura, é quase um milagre. Ser claro, preciso, inteligente e ainda se expressar com graça é difícil, mas não tão raro. Cada país tem uma meia dúzia de casos desses por século. O difícil é fazer isso por anos e anos sem botar os bofes pra fora. Tive a sorte de conhecer o Verissimo pessoalmente. Sou péssimo com datas, mas cravo: foi em 1975, quando o frasista e homem dos sete instrumentos Guaraci Fraga organizou uma antologia de humor chamada QI-14, onde entrei de contrabando. Nosso encontro com certeza vai pros anais da história literária brasileira. Ele me disse: oi. E eu, mesmo manietado pela timidez da minha adolescência, respondi na bucha: oi. Isso foi tudo, mas o silêncio que se seguiu estava prenhe de possibilidades. Nesses últimos quarenta e um anos, nos encontramos algumas vezes e até falamos frases completas. Infelizmente, nunca tive coragem de agradecer os momentos felizes em que li e reli muitos dos livros dele. Gosto de pagar minhas dívidas, desde que não envolvam dinheiro, mas tem horas que o pudor atrapalha. Enfim, desculpe o mau jeito. E feliz aniversário, cara. Continue escrevendo pelo menos até os 120. Veríssimas Como aperitivo, catei ao acaso algumas frases do livro Veríssimas. ? O Brasil é governado por minoria esmagadora. ? O político brasileiro, uma vez eleito, se sente a salvo em outro país, o Brasil oficial, que não deve nada ao Brasil de verdade, muito menos explicações. ? Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data. ? Nossas instalações carcerárias melhorariam muito se as elites começassem a frequentá-las. ? O único engajamento político que se deve pedir a um artista é o de retratar a estupidez humana e usar sua criação como um testemunho contra. Se não fosse pelos artistas, a crueldade da história não deixaria vestígios. ? Viva todos os dias como se fosse o seu último. Um dia você a certa. ? Confundir ordem e normalidade com seus próprios privilégios é um velho hábito de qualquer casta dominante. ? Os Estados Unidos conseguiram se tornar uma potência inédita na História do mundo: são como Roma e os bárbaros ao mesmo tempo. ? As unhas do pé serviam bem ao macaco, mas nada explica que nos dias de hoje elas permaneçam, cresçam e sejam pintadas de ruby incandescente. ? Uma poesia não é feita de palavras. A poesia já existe. A gente só põe as palavras em volta para ela aparecer - como as bandagens do homem invisível, lembra? ? A nossa insignificância diante do Universo infinito é um negócio chato, e o pior é quando a mulher nos lembra disto na frente das visitas. ? Toda a história da democracia no Brasil é a história da educação de nossa elite na arte de não mudar nada, ou só mudar o suficiente para não perder o controle.