Boludos e Hinchapelotas

Quando meu pai se referia a uma pessoa pela qual tinha pouco apreço, dizia que era um hinchapelotas. Em outras ocasiões, usava uma expressão …

14/08/2009 00:00
Quando meu pai se referia a uma pessoa pela qual tinha pouco apreço, dizia que era um hinchapelotas. Em outras ocasiões, usava uma expressão mais pesada, sugerindo que o fulano era um trapichero. E, quando algum fato não merecia uma explicação lógica, sentenciava: ?- Son cosas de bandoneón?. *** Eram antigas lembranças de suas andanças por Buenos Aires, mas o que eu não sabia na época é que ele usava o lunfardo, a gíria dos arrabaleros portenhos, considerada pelos bem nascidos de então como ?dialeto dos ladrões?. Anos mais tarde, aprendi que gíria é tema cultural na Argentina, onde funciona uma Academia Porteña del Lunfardo, dedicada a estudos sobre a fala coloquial dos moradores dos arrabaldes e da zona portuária. Quando famosos tangueros, como Carlos Gardel e Edmundo Rivero, popularizaram o vocabulário lunfardista em tangos e milongas, o tradicional diário ?La Prensa? publicou um glossário com as palavras mais comuns da irreverente gíria, que passaram a ser adotadas por metade da população de Buenos Aires. *** O meu primeiro encontro sério com o lunfardo aconteceu nos anos 80, no centenário Café Tortoni, santuário de boêmios e intelectuais portenhos. Até então, eu ouvia ? mas não entendia ? nas esquinas e bodegóns da cidade expressões que não se encontram nos dicionários do idioma castelhano. Por sorte, quem me acompanhou foi Carlito Irigochea, notívago e publicitário, que conhece uma por uma as letras dos tangos clássicos de Celidonio Flores e Alfredo de Pera. Quando chegamos, as mesas estavam ocupadas por animados senhores de cabelos brancos, tomando seus chupes e birras ? e a lição já começa ali: chupes significa aperitivos e birras, cervejas. Sentamos junto a uma roda envolvida em animada conversa, onde Carlito logo identifica falas típicas dos lunfarderos. Para enriquecer a cena, um deles está abraçado a uma guitarra, a qual dedilha de quando em vez, para sublinhar os comentários mais picantes dos amigos. Meu amigo começa a atuar como intérprete, pescando e traduzindo o palavreado do grupo, enquanto eu procuro anotar as expressões mais pitorescas: ?No tiene los patitos en fila?: referindo-se a alguém amalucado; ?Lanzar los chivos?: vomitar, estar enjoado; ?Bacan?: pessoa de boa figura, endinheirada; ?Usá el marote": usar o cocoruto; ?Me gasté una luca en pilchas?: gastei mil pesos em roupa; ?Hay morfi y chupi en la fiesta!?: há comes e bebes na festa. Neste ponto, meu amigo lembra que os portenhos gostam de usar a culinária para qualificar pessoas. Assim, ?papa frita? ou ?salame? quer dizer bobo ou otário, enquanto ?zapallo? (abóbora) significa cabeça-dura. Já alguém usado em um negócio sujo (no Brasil chamamos laranja) é ?perejil? ( salsinha). Também é muito popular a expressão ?la verdad de la milanesa?, para enfatizar um fato que não admite contestação. Na mesa ao lado, o assunto passa para política. Carlito avisa que lunfardo é a linguagem preferida para se falar mal da política e dos políticos. Estico o ouvido e anoto: ?Vos estás del tomate si crees que los diputados Morandi y Agoreña van a devolver el dinero que robaron?.  Essa dispensa tradução ? claro que ?del tomate? quer dizer que alguém não bate bem da cabeça. *** Eu estava me divertindo com a primeira aula sobre lunfardismo, mas ela termina logo, pois o grupo se dispersa, sobrando apenas o homem com a guitarra, que agora toca para si mesmo. Na saída, me despeço de Carlito, que me entrega um pequeno pacote. Entro no taxi e abro o embrulho ? é um livrinho em inglês, com o provocativo título: ?¡Che Boludo! ? A gringo guide to understanding the Argentines?. A capa do livro me ensina uma importante lição: como fazer o gesto típico que deve acompanhar a palavra boludo. Detalhe para não esquecer: boludo tanto pode significar um insulto como um termo afetuoso. Sobre a sugestão do subtítulo, não sei se um dia conseguirei entender meus amigos portenhos.