Colhendo prazeres – I

"O flâneur é um príncipe disfarçado que colhe prazeres nos lugares por onde anda". Charles Baudelaire. *** O jornalista e escritor norte-americano A. J. …

31/03/2016 16:53 / Atualizado em 08/04/2016 17:09
"O flâneur é um príncipe disfarçado que colhe prazeres nos lugares por onde anda". Charles Baudelaire.

*** O jornalista e escritor norte-americano A. J. Liebling era careca, gordo e glutão respeitável. Fez fama com suas deliciosas e irreverentes crônicas no The New Yorker, sobre a Paris dos anos 30 e 40. Mesmo com dificuldade de caminhar, era um infatigável flâneur, que perambulava pelas ruas de Paris no período de entre-guerras. Desviava de restaurantes famosos, preferindo se deter nas feiras de rua, onde se demorava, cheirando ervas e provando queijos e defumados. Nos bistrôs do caminho, antes de olhar o menu, insistia em conhecer o chef e sua história. O poeta diria que aquele era um colhedor de prazeres.

*** Ele se autodenominava um flâneur-gourmet e explicava: sou um personagem cuja especialidade é fruir ruas, praças e paisagens, com necessárias paradas em fromageries, boulangeries e patîsseries do caminho. Se A. J. Liebling estivesse vivo e retornasse à Paris de hoje, seria divertido imaginar seu roteiro, como um moderno flâneur-gourmet. Talvez tentasse as caminhadas que Charles Baudelaire fazia, a partir de sua casa no nº 22 do Quai de Béthune, na Île de la Cité. Ou replicaria os caminhos dos judeus do Marais, quando iam em busca de temperos e especiarias do Oriente no antigo Marché des Enfants Rouges, na rue de Bretagne. Mas é quase certo que Liebling, medindo os passos com calma e vagar, cruzaria uma das pontes sobre o Sena e, ao longo do Boulevard Saint-Michel, lançaria um ocasional coup d?oeil para os cours e passages escondidas entre as velhas mansardas de Saint-Germain-des-Prés. Entrando nos Jardins du Luxembourg, por um pequeno portão quase oculto na rue de Vaugirard, faria uma demorada pausa para lançar farelos de brioches aos pombos e fumar um gitane blonde. Segue adiante, pelas ruas de Montparnasse, onde replica os passos de Marcel Proust, Josephine Baker, Pablo Picasso, Oscar Wilde e Jorge Luis Borges. Caminhando pelo Boulevard du Montparnasse, ele chega ao nº 105, no lendário La Rotonde. Sentindo fome, senta à mesa preferida de Amadeo Modigliani e Henri Matisse, que muitas vezes pagavam a conta desenhando mulheres nuas em guardanapos. Como bom glutão, A. J. Liebling certamente repete o mesmo pedido da dupla: Magret de Canard rôti avec figues e Oefs à Crème de Cèpes. E bem provavelmente, vai escrever um artigo, contando que foi ali mesmo, no La Rotonde, que o fotógrafo surrealista Man Ray seduziu a notória Kiki de Montparnasse e onde Charles Chaplin e Mary Pickford anunciaram a criação da sua United Artists.

*** Depois de um (ou dois) Armagnac, o jornalista continua seu caminho, descendo o Boulevard Saint-Germain até chegar à Rue  de l?Ancienne Comédie. No nº 13, presta silenciosa homenagem diante das portas escarlates do Le Procope, o primeiro café da França, fundado no distante 1686. E lembra que, naqueles salões do passado, jantavam Honoré de Balzac, La Fontaine, Victor Hugo, Molière e Racine. E que foi onde Benjamin Franklin rascunhou a primeira redação da Declaração de Independência dos Estados Unidos. Antes de retomar seu caminho, A. J. Liebling ainda lança um olhar casual ao menu à porta, mas não encontra os pratos que eram preferência daqueles famosos glutões, como o Gratinée de l"Oignon à Odeon e a Tête de Veau en Cocotte. Faz uma anotação mental de voltar ao Le Procope em um outro dia, quando os apetites o acossarem. E, retoma incansável, sua jornada da gastronomia do olhar.

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