'Todo dia a mesma noite': Familiares de vítimas da Kiss pretendem processar Netflix

Movimento não tem ligação com a associação, que declarou não concordar com o ingresso da ação judicial

Obra reconstitui o incêndio e a luta por justiça ao longo da última década - Crédito: Guilherme Leporace/Netflix

Na última semana, estreou na Netflix a série 'Todo dia a mesma noite', que reconstitui o incêndio da boate Kiss, ocorrido em Santa Maria em 27 de janeiro de 2013, e a luta por justiça ao longo da última década. Porém, alguns familiares de vítimas afirmam que foram surpreendidos negativamente pela obra e pretendem processar a plataforma de streaming. Esse movimento não tem ligação com a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que declarou não concordar com o ingresso da ação na justiça.

Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu no incêndio a filha Évelin Costa Lopes, de 19 anos, é quem coordena o grupo, formado por cerca de 40 famílias, que planeja dar entrada no processo. Os membros alegam "exploração financeira da tragédia". "Fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos", defende o líder do movimento.

De acordo com Eriton, muitos dos familiares não foram avisados e alguns pais estão passando mal por conta da série. "O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós", afirma. O grupo é orientado pela advogada Juliane Muller Korb, que considera como ponto crucial a abordagem da responsabilidade afetiva e social dos streamings. "Faltou sensibilidade, por parte da Netflix, de fazer um contato com os pais. Não para pedir permissão nem coibir a licença poética, pois a história não tem dono, mas para avisar que seria algo totalmente diferente de tudo que eles já viram", explica. 

De acordo com a advogada, as famílias estavam preparadas para um documentário e não para uma série dramática. "Os pais e os sobreviventes estão 'acostumados' a ver materiais jornalísticos, com reproduções e relatos fidedignos. Mas a série é diferente", justifica. Por se tratar de uma "simulação", pontua Juliane, o impacto é mais forte. "Eles estão 'acostumados' com o pós-tragédia. E a série mostra o antes, então, é como se ocorresse de novo. É uma linha muito tênue entre ficção e realidade", alega.

Posicionamento da AVTSM

Opondo-se ao movimento, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) divulgou uma nota neste domingo, 29, em que alega se sentir "representada" pela obra da Netflix. Assinado pelo presidente Gabriel Rovadoschi Barros, o pronunciamento foi disponibilizado nas redes sociais e destaca que os familiares estavam cientes da realização da série. "A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados", justifica-se no documento.

A publicação ainda reitera que a AVTSM não pretende entrar com nenhum processo, pois acredita na "potência das produções na luta por justiça e a luta por memória". "Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios, pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por Justiça", pontua-se na nota, que ainda ressalta que nenhum dinheiro foi recebido pelo grupo.

Leia a nota da AVTSM na íntegra:

Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série Todo Dia a Mesma Noite, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através desta nota que estávamos, sim, cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.

A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.

Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o primeiro dia de nossa fundação.

Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.

Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios, pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por Justiça.

Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.

Gabriel Rovadoschi Barros

Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria

Santa Maria, 29 de janeiro de 2023

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