Paulo de Tarso Riccordi: A inquietação com o que é humano

Bageense sonhava com a gastronomia, mas gosta mesmo é de contar histórias

04/02/2011 00:00
Por Poti Silveira Campos Gastronomia, histórias contadas junto à cama e uma pitada do acaso são ingredientes da receita que fez com que Paulo de Tarso Riccordi, 61, experimentasse e se apaixonasse pelo jornalismo. À receita, seria possível acrescentar uma boa porção de inquietação com o que é humano. A descoberta da profissão, que o levou a participar de experiências importantes da comunicação gaúcha, como a Rádio Continental AM 1120 kHz (1971-1980) e os jornais Folha da Manhã (1969-1980) e Diário do Sul (1986-1988), além de TVE e TV Difusora e assessorias de comunicação, ocorreu em Porto Alegre, 22 anos depois do nascimento em Bagé, no dia 1º de dezembro de 1949. Riccordi viveu menos de quatro anos na cidade da Fronteira. Em 1953, o pai, o tenente do Exército Paulo Pio Knorr Riccordi, morto em 1994, foi transferido para a Capital. ?Sou bageense do Menino Deus?, diz, referindo-se ao bairro de Porto Alegre onde a família foi morar com os três filhos. O jornalista retornou para Porto Alegre em 2009, depois de três anos em Fortaleza (CE), para cuidar da mãe, Suzana, 83. Ele se considera afastado da profissão e dedica-se a prestar consultoria para prefeituras de Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Ceará, Pernambuco e governo do Estado do Piauí. As consultorias, que tiveram início há 11 anos com ênfase em comunicação, concentram-se em gestão pública desde 2005. O afastamento do jornalismo, porém, pode ser circunstancial: ?Eu voltaria para uma redação que tivesse ao menos uma janela aberta para o New Journalism?, afirma Riccordi, elogiando a aproximação entre jornalismo e literatura criada nos anos 1960, por nomes como Norman Mailer, Truman Capote, Gay Talese e Tom Wolfe, nos Estados Unidos. A grande família Seus pais eram de famílias enormes, famílias que estavam sempre juntas. ?Cresci com a casa lotada?, relata. Depois do jantar, o grupo costumava se reunir para contar histórias. ?Acho que acabei escrevendo por conta disto.? Além disto, a prole numerosa também facilitou para que Riccordi formasse uma família atípica para os dias de hoje: 10 filhos ? ?seis gurias e quatro guris? ? gerados com três mulheres. ?Tenho neta de 12 anos, mais velha do que o filho mais novo, de 10. E tudo na volta. Contato sempre presente?, garante. Hoje, está casado com a mineira e estudante de Psicologia Cristiane Faria, 32. Até o momento, o casal não teve filhos. O ingrediente do acaso ocorreu na Rua da Praia, no Centro de Porto Alegre. Em 1972, Paulo de Tarso Riccordi estudava Arquitetura na Unisinos, mas sonhava com gastronomia. No final de abril, ele havia comparecido ao Senac em busca de informações sobre cursos na área. Com prospectos na mão, encontrou o jornalista Sérgio Quintana na Rua da Praia, que o convidou para ser rádio-escuta na Rádio Continental. A emissora iniciara as transmissões no dia 1º de março de 1971, dirigida a jovens universitários: falava gírias do momento e rodava o que havia de mais quente no rock nacional e internacional. Inspirada na Rádio Mundial, do Rio de Janeiro, a Continental pertencia a Roberto Marinho (1904-2003), então um aliado da ditadura militar imposta ao país havia sete anos. A rádio, porém, tornou-se conhecida também por protestar contra o regime. O enfrentamento tinha nome: Fernando Westphalen (1937-2009), apelidado desde a infância de ?Judeu?. Nascido em Porto Alegre, Judeu costumava dizer que ?não engolia a ditadura?. Radialista e publicitário, assumiu a emissora em 1965, adquirida deficitária pela Globo. A saída do vermelho ocorreu paralelamente ao engajamento com a esquerda. Em busca de Justiça Desempregado, Riccordi aceitou o convite. Durou pouco no cargo. Começou na rádio no dia 2 de maio. No dia seguinte, um redator deixou a emissora. ?Para ser redator na Continental era preciso ter cultura e falar gíria. Eu falava gíria enlouquecidamente?, conta. Ele também era opositor da ditadura, outro importante requisito de perfil. Durante o curso Científico, no hoje extinto Colégio Estadual Pio XII, em Porto Alegre, Riccordi havia presidido o grêmio estudantil. Era 1968 e uma onda de insatisfação juvenil se instalara no planeta, incluindo o futuro jornalista. ?Eu, de formação cristã, mas progressista, anglicana, queria Justiça?. Queria o que é humano. Na Continental, ?o negócio era incomodar a ditadura. Éramos guris e sequer olhávamos para a rádio como um empreendimento comercial?, confessa Riccordi. Em 1973, foi bater na Folha da Manhã, tabloide matutino da Caldas Júnior, carinhosamente chamado de ?Folhinha?. Queria fazer jornalismo ?sério? e queria contar histórias. Humanas, é claro. Foi procurar o Bicudo, apelido do jornalista Elmar Bones da Costa, editor-chefe do diário. Tentou colocar um condicionante: não trabalhar nas editorias de Polícia e de Esportes. Terminou na Polícia. Sob o comando do editor de área, Osmar Béssio Trindade (1936-2009) ? ?ao lado do Bicudo, um dos maiores nomes do jornalismo gaúcho? ?, Riccordi descobriu que a Folha ?era terreno fértil? para contar histórias humanas e contestar o sistema. ?Caí no lugar certo na época certa?, acredita com convicção. Trindade tornou-se um mentor desde a primeira pauta ? o julgamento do Camisa Preta, ?um bandidaço que matou muita gente sempre com mais de 10 tiros?. Lições do editor estavam afixadas na parede: expressões vedadas à redação. A lista determinava uma ruptura com a tradição da cobertura de Polícia até então. Nada de ?elemento, meliante, bandido e suspeito?. A regra era combater preconceitos. Nada de aceitar cegamente a versão da corporação, mas manter respeito à lei e aos Direitos Humanos. Compadres da Fronteira Aos 24 anos, Paulo de Tarso Riccordi se encantou com a Folha da Manhã também por reencontrar as próprias origens. ?Vários colegas eram da Fronteira, gente que conhecia muita vida, que conhecia tropeiros, que conhecia pobreza.? Gente ligada em coisas humanas. E havia o texto bonito. Relembra a abertura de uma reportagem de Rosa Maria Bueno Fischer: ?'Cheguei ao portão, bati palmas e gritei: ? Ó vizinha.' Aquilo foi uma surpresa. Perguntei ao Trindade: 'Pode fazer isto?', e ele respondeu: 'Se for bem feito, sim'?. Era a chance de escrever inspirado no estilo de Mailer, Wolfe e os brasileiros João do Rio e Machado de Assis ? mestres cuja leitura Riccordi considera obrigatória a qualquer estudante de jornalismo. A arquitetura ficou para trás. ?Na Folhinha, eu fui realmente um jornalista. Era a única coisa que me interessava.? Em 1974, ingressou em Jornalismo na PUC, onde se formou em 1985. Mais do que a faculdade, no entanto, Riccordi considera uma churrascaria a escola mais importante ? a Itabira, no Menino Deus. A churrascaria pertencia ao sogro do jornalista Kenny Braga e ali, nas madrugadas, os ?guris? da Caldas Júnior, como Riccordi, recebiam as aulas de Trindade e Bicudo, entre outros. ?Comíamos picanha com feijão mexido, regados com vinhos da Granja União, e contavam-se muitos causos, falava-se da vida e da política. Dezenas e dezenas de pautas foram produzidas ali, quando se fazia jornalismo com repórteres na rua e na estrada?, escreveu em um texto em homenagem a Trindade, na época da morte do colega, em 2009. Riccordi saiu da Folha da Manhã em 1978, demitido por agitação sindical, uma época de muita briga contra o regime e com pessoas que lhe eram queridas, como Trindade. Fica entristecido ao expiar atos do ?cara que na época era muito brigão e fez grosserias até para amigos?, como escreveu no texto em memória do editor. Coisa de humano. Na luta contra a ditadura, havia se tornado, em 1977, um dos fundadores da Convergência Socialista. ?Queríamos criar um movimento de convergência, mas acabamos criando uma tendência.? O jornalista perdia espaço para o contestador político. Mais adiante, pensa em Bicudo: ?Troca governo, esquerda, direita, e o projeto de vida do Bicudo é escrever jornal. Isto é um jornalista. São caras que vivem para isto.? Aproximação com TV Depois da saída da Folha da Manhã, Riccordi afastou-se das redações de jornais, exceto pela passagem na breve experiência do Diário do Sul, entre 1986 e 1988. O projeto do Diário o fez desistir de lecionar na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). ?Só de ouvir o nome dos editores, gente querida e amiga.? Antes disto, trabalhou na TVE em 1980, a convite de José Antônio Daudt (1940-1988). Em 1990, ingressou no mestrado em Ciências Políticas na Ufrgs. Concluiu o currículo, mas não defendeu dissertação. No mesmo ano, vinculou-se ao Centro Internacional de Estudos Superiores de Jornalismo para a América Latina (Ciespal), órgão criado pela Unesco, no Equador. Deu aulas para a formação na área de TV, durante três meses por ano, até 1996. Durante a gestão de Raul Pont na prefeitura de Porto Alegre, de 1997 a 2001, criou a Coordenação de Políticas Públicas, proposta recuperada pela pasta de Comunicação do governo de Estado com Tarso Genro. ?A ideia é de uma área que não tenha a ver com a imagem do governo, mas fomentar iniciativas da comunidade?, explica. ?Estou há seis anos sem contato com comunicação, mas viajo bastante para falar sobre este trabalho.? Dos sonhos de ser cozinheiro, restou o hobby e 669 receitas arquivadas no palm top. No mesmo aparelho, estão 118 arquivos de ficção. Riccordi ainda gosta de contar histórias: ?Tenho 10 prêmios em literatura, mas não encontro um editor.? E, incrível, revela ter escrito boa parte dos contos ali mesmo, no minúsculo teclado do dispositivo móvel.