Cristiano Goulart: Jornalista mão na massa

Ex-repórter da Band e Rádio Gaúcha, ele mora na Irlanda desde 2018 e criou o Agora Europa

Um rapaz latino-americano que, quer esteja no Brasil ou na Europa, sempre se interessou mais em amar e mudar as coisas. Essa mistura de letras de canções de Belchior até poderia auxiliar na descrição da trajetória do jornalista Cristiano da Silva Goulart. Mas foi no Jornalismo - e não na música, apesar de ser um fã dos clássicos da MPB - que ele encontrou ferramentas para transformar realidades, a começar pela sua. 

Nascido em 23 de dezembro de 1988, cresceu no Morro Santa Teresa, em Porto Alegre, e teve uma infância marcada por privações. O filho do meio da ex-empregada doméstica Maria Silva e do metalúrgico César Goulart (já falecido) cedo aprendeu a caminhar mirando o horizonte. Talvez inspirado pela vista do famoso morro das TVs ou como um exercício de resiliência num contexto adverso, agravado pela dependência química do pai.

Se faltavam recursos para a passagem de ônibus, sobrava disposição para percorrer diariamente cerca de seis quilômetros até a escola, na época do ensino médio. Ali, Cristiano já havia vislumbrado que o conhecimento o faria alçar voos mais altos, para locais em que ele jamais havia imaginado aterrissar. O trabalho também foi, nesse sentido, outro importante aliado e, antes de atuar como repórter nas principais emissoras gaúchas, fez de tudo um pouco: de vendedor de pipoca no estádio Olímpico a torneiro mecânico.

No dia do seu aniversário de 16 anos, fez uma entrevista de emprego e, uma semana depois, iniciou o estágio como entregador de medicamentos em uma farmácia. Foi quando decidiu que iria guardar parte dos seus rendimentos para ajudar a mãe a comprar um apartamento, objetivo que foi atingido uma década depois. "Até os 26 anos, morava, literalmente, num pequeno casebre de madeira. Chovia dentro de casa e, às vezes, era melhor ficar fora porque pelo menos não alagava", lembra.

A redefinição de rota da família, entretanto, já estava em curso quando o imóvel foi adquirido. O ano era 2010 e a grande reviravolta veio com a publicação da lista dos aprovados no vestibular da Ufrgs. Cristiano seria o primeiro de sua família a entrar em uma universidade, um feito que levou sua mãe, Maria Teresa da Silva, então doméstica, a retomar os estudos e concluir o ensino médio. Um novo mundo de possibilidades se abriria para os dois. 

Jornalismo resolutivo

Mudar o mundo é um desígnio de todo o jornalista. Com Cristiano não foi diferente, exceto que a ambição não era, digamos, tão grande assim. "Sempre quis ser jornalista, desde muito cedo. Por morar em uma comunidade carente, associei Jornalismo com solução de problemas. Eu via como uma ferramenta para mudar a realidade de comunidades como a minha", conta.

Como repórter e produtor, acumulou passagens pela Band News FM, Rádio Gaúcha e SBT, período em que recebeu prêmios como o Direitos Humanos de Jornalismo. Numa época em que se começava a falar de jornalismo de dados, Cristiano se destacou com reportagens que, com o auxílio do Excel, faziam análises sobre gastos dos governos, por exemplo. 

O gosto pelas planilhas vinha de longa data: começou com um curso na adolescência, conhecimento que, mais tarde, renderia uma promoção na farmácia. Com o incremento no salário, além da poupança para a casa da mãe, também pôde economizar para fazer um ano de curso pré-vestibular. Mas, como a aprovação veio antes do previsto, com o saldo na conta fez a sua primeira viagem internacional, para o Chile e Argentina.  

Foi na Fabico que Cristiano conheceu aquela que viria a ser sua companheira de jornada, a também jornalista Daiane Vivatti. Mas a primeira interação com a futura esposa não foi lá muito amigável. Mais tarde, embora se cruzassem em pautas, coube a um amigo em comum, o repórter Jônatha Bittencourt, fazer a (re)apresentação e (re)aproximação. Juntos há oito anos, em abril de 2018 empreenderam um dos seus maiores desafios, o de recomeçar a vida em outro país. 

E agora? Europa

Depois da tempestade, o arco-íris. E é no fim deste que, segundo a mitologia irlandesa, o Leprechaun escondeu um tesouro. Não foi a busca pelo pote de ouro ou por lendas envolvendo duendes que levou o casal a se mudar para Dublin, na Irlanda. O plano inicial era aprimorar o inglês, e, em paralelo, exercer outras atividades. "É sempre um desafio ser imigrante. Não importa se tu tens cidadania ou não. No momento que tu abres a boca, as pessoas sabem que é imigrante. No meu caso, não preciso nem abrir a boca", relata, acrescentando que "ser imigrante não é exatamente o que se posta no Instagram".

Assim que chegou ao Velho Continente, Cristiano trabalhou em uma fábrica, junto com outros imigrantes, cortando e embalando frutas, função que exerceu durante um ano e meio. Na sequência, em outra daquelas situações que representam uma guinada em sua vida, apostou num curso sobre técnicas em entrevistas de emprego, o que lhe permitiu ser contratado como líder de equipe em uma empresa de atendimento ao cliente. Depois, trabalhou na Microsoft  e, atualmente, é analista de dados na PokerStars, na área de investigação de fraudes e automação de processos. Nesse meio-tempo, ainda iniciou uma nova graduação, em Ciências da Computação. Tudo pelo Jornalismo.

Enquanto se reconstruía como profissional, veio a pandemia do novo coronavírus. E Cristiano percebeu que as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes - que ele mesmo já havia vivenciado, como ataques xenófobos - eram potencializadas em meio ao caos. Resolveu, então, mais uma vez usar a sua melhor arma para mudar microrrealidades: o Jornalismo. Com o apoio da companheira Daiane e de outros dois amigos, os jornalistas Alvaro Andrade e Estevão Pires, criou o portal Agora Europa (AE) para levar informações confiáveis e de qualidade, focadas exclusivamente no público brasileiro residente no continente europeu.

E foram as dificuldades técnicas de se colocar um site no ar e, mais tarde, o desejo de entregar um conteúdo mais interativo que motivaram o jornalista a voltar para a faculdade. Passados dois anos, o AE conta com uma equipe de profissionais em nove países europeus, contabiliza mais de um milhão de visualizações e mais de 100 mil visitantes mensais, além de mais de 180 mil seguidores nas redes sociais. "O AE acabou tomando uma proporção maior do que a gente imaginava", avalia, destacando que provavelmente não há outro veículo brasileiro com tantos jornalistas espalhados pela Europa e focados nos brasileiros. 

Jornalismo e voluntariado na Ucrânia

Entre tantas andanças e mudanças, persiste o hábito de olhar para o amanhã. Nos próximos anos, o jornalista diz se imaginar com conhecimento mais avançado em programação e automação, mas, sobretudo, dedicado ao Agora Europa. No nível pessoal, os planos para o futuro também incluem a primeira viagem internacional da mãe, uma cerimônia para celebrar a união com Daiane e uma possível mudança para a Itália. "Eu realmente gostaria de tentar fazer o AE dar ainda mais certo, no sentido de ser lucrativo e sustentar uma estrutura jornalística na Europa", diz.

No fim de 2020, o site foi um dos selecionados para receber um fundo assistencial do Centro Europeu de Jornalismo (EJC, em inglês) e do Facebook para Jornalismo. Ainda que o trabalho dos profissionais mantenha o caráter voluntário e cooperativo do princípio, o AE tem se transformado em referência para os brasileiros expatriados e realizado importantes coberturas, como a da guerra na Ucrânia. Acompanhar, de perto, o começo do conflito foi um dos eventos mais marcantes na trajetória de Cristiano e sua companheira. Juntos, percorreram de Norte a Sul a fronteira entre Ucrânia e Polônia logo que o conflito estourou. 

"Foi uma das coberturas mais difíceis. A realidade foi muito dura. Naquelas primeiras semanas, ver as pessoas tendo que sair correndo de casa, quando ainda não havia as estruturas para os refugiados, foi muito marcante", recorda. Como o senso de dever, no seu caso, sempre foi além dos fatos, o jornalista arregaçou as mangas e colocou as mãos na massa. Depois de reportar os acontecimentos durante uma semana, ingressou na fileira de voluntários que faziam o resgate de ucranianos, chegando a dirigir 16 horas ininterruptas, numa ação que durou 10 dias.

Na periferia de Porto Alegre, na Irlanda ou na Ucrânia. Não importa o local, Cristiano segue tentando dar a sua contribuição para melhorar a vida, especialmente das pessoas em situação de vulnerabilidade, talvez por já ter estado, mais de uma vez, neste mesmo local.  "Sou uma pessoa que se apaixona bastante pelas coisas que acredita, um aspecto que, no sentido profissional, faz com que eu me dedique muito às coisas com as quais estou envolvido e que me interessam."

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