Hermínio d'Andréa: Idoso, mas não ocioso

Aos 83 anos, o jornalista é um dos moradores mais ativos e conhecidos do Asilo Padre Cacique, onde edita um informativo

Por Cleidi Pereira

O jornalista Hermínio d'Andréa é um homem simples: levou uma vida modesta, não teve filhos, não conquistou montanhas e não viajou pelo mundo. No entanto, na década de 70 era conhecido como um dos maiores líderes comunitários de Porto Alegre e estava sempre pronto para defender amigos, vizinhos e ser uma espécie de porta-voz dos mais necessitados. Hoje, aos 83 anos, além dos cabelos brancos, traz no rosto as marcas que a vida lhe proporcionou. Ele é um dos moradores mais ativos e conhecidos do Asilo Padre Cacique, em Porto Alegre, onde vive há três anos. Participa do coral, faz a abertura das missas que acontecem diariamente na capela da entidade e é responsável pelo informativo 'O Cacique', um jornal interno com circulação mensal, que se transformou na sua razão de viver. Por falta de recursos, a publicação de duas páginas é feita em folhas A4 em uma impressora comum.

A fala pausada e expressiva revela uma figura agradável. Por mais que a memória falhe quando se trata de nomes e datas, isto não o impede de recordar o que considera grandes feitos, que até podem não ser tão grandes assim, mas ainda arrancam gargalhadas e fazem os pequenos olhos de Hermínio brilharem. Os sinais da idade são de um homem que já viveu muita coisa, mas os momentos mais felizes, segundo ele, foram vividos ao lado da bela Iraci Lucci, com quem foi casado por 48 anos. Foi na simplicidade que encontrou um grande amor. Iraci era sua vizinha e sempre que o rapaz dirigia-se ao trabalho, ficava de olho na moça. Logo, a troca de olhares transformou-se em um namoro e o namoro, em casamento.

Apesar de não ter filhos, o casal vivia uma vida feliz e Hermínio, sempre apaixonado pela esposa. "Tive uma vida boa, não posso reclamar. Fiz tudo o que um homem tem fazer", conta. Depois que Iraci faleceu, em 2005, o jornalista perdeu o chão. A vida não tinha mais graça, o corpo não sentia frio nem fome. A rotina dele resumia-se a ficar trancado em um escritório. "Me desgastei muito, fiquei sozinho, isolado? Até que alguns amigos resolveram me tirar de lá e me trouxeram para o asilo. Às vezes eu paro e penso e ainda não acredito que sou eu quem está vivendo tudo isso. Ainda bem que estas pessoas me socorreram, pois sozinho não conseguiria superar", confessa com lágrimas nos olhos.

A ferida ainda não está cicatrizada, mas ele conseguiu superar a perda e, hoje, o homem que disse ter chegado no asilo com 'a vista ruim' e a 'mão tremelica' tenta ocupar todo o seu tempo com atividades que lhe agradem. O que inclui, além do amor pelo seu jornal, uma paixão pelo rádio. "Adoro ouvir rádio, pois me faz companhia. Peguei o costume de ouvir, porque parece que o locutor está falando com a gente. Comprei uma TV, mas não gosto de assistir". Quando se trata de atividades físicas, passa longe: "estou muito velho pra esse tipo de coisa". O corpo pode até não agüentar mais, porém a mente é exercitada diariamente. Ele está sempre escrevendo e criando frases. Irreverente, Hermínio diz que é idoso, mas não ocioso.

Gosto pelas palavras

Nascido em Porto Alegre a 25 de abril de 1925, Hermínio veio de uma família humilde e sempre ajudou os pais entregando viandas e vendendo pastéis. Apesar da vida difícil, nunca deixou de estudar. O gosto pelas palavras vem desde criança e, com apenas seis anos, já sabia ler e escrever. A atividade jornalística surgiu durante a juventude devido à sua preocupação em deixar os colegas bem informados. Com muito gosto, encarregava-se de criar jornais para sua escola e trabalho. Aos 14 anos trabalhava em um café e suas tarefas eram limpar o estabelecimento e encher os açucareiros. Quando o local foi vendido e transformado em restaurante, o jovem permaneceu na empresa e foi promovido a assador de frangos - "o primeiro da capital", reivindica.

Como o cargo de jornalista nunca foi sua função principal, Hermínio exerceu por pura paixão o trabalho de correspondente em jornais como A Noite, do Rio de Janeiro, Diário de Notícias, Folha da Tarde, Jornal de São Leopoldo e Correio do Povo. Sempre que acontecia um fato que merecia destaque, ele encarregava-se de avisar, principalmente, os veículos da Caldas Júnior.  "Era maio de 1971 e faltava uns dez minutos para as três horas da tarde. Foi quando ouvi um estrondo e logo tratei de ligar para a Caldas Júnior para informar sobre um incêndio numa fábrica de fogos na avenida Cairu, no bairro São Geraldo. Foi tão rápido, que eles ainda conseguiram tirar uma foto da explosão. Eu até tive que tomar uma dose de conhaque porque a cena era forte e, no local, morreram muitas pessoas", relembra.

As contribuições que, ao longo dos anos, prestou à imprensa renderam-lhe o título de jornalista, mas Hermínio é do tempo em que não era exigido diploma acadêmico para exercer a profissão. Na década de 50, mudou-se para Esteio e fundou A Gazeta de Esteio. "Foi através do nosso 'jornalzinho' que foi dado o primeiro grito de emancipação da cidade", garante. A carreira de 'fiel correspondente do Correio do Povo' começou logo com o furo de que estava ocorrendo, em segredo, um movimento para a emancipação do município. "Houve encrenca e choque de idéias, pois divulguei uma informação de um movimento que corria em segredo. Depois que o município foi emancipado, em 1952, Luiz Alécio Frainer, proprietário de uma cadeia de cinemas, foi eleito o primeiro prefeito e eu fui trabalhar com ele. Mas isso não impediu de continuar enviando minhas colaborações ao CP. Depois, apareceu politicagem em Esteio e resolvi voltar a Porto Alegre".

Líder comunitário

Na década de 60, o jornalista fundou a Associação de Moradores das Sete Ruas, que englobava os bairros Floresta e São Geraldo, e lançou o jornal Assetur Informativo, veiculado nesta região. "Usei a experiência adquirida como correspondente de vários veículos e lancei o jornal no formato tablóide. Quando eu vi, a publicação foi atravessando fronteiras e foi parar no Uruguai, na Itália, na Polônia. Cheguei, inclusive, a ter uma correspondente nos EUA, em Nova Jersey, mas esqueci o nome dela, ela mandava as notícias de lá com fotografia e tudo e a gente publicava aqui", relembra. O Assetur Informativo circulou por 32 anos e só saiu das ruas quando Hermínio foi morar no asilo.

Considerado um dos maiores líderes comunitários de Porto Alegre da década de 70, o jornalista era visto por muitos moradores como uma espécie de 'faz-tudo'. Em abril de 1973, a Folha da Tarde veiculou uma matéria sob o título 'Ele é o líder comunitário da cidade', onde Hermínio explicava: "Sempre fui um homem preocupado em fazer novas amizades e conversar com os vizinhos e discutir os problemas das ruas. Assim fui fazendo relacionamentos com autoridades e visitando repartições. Acabei me transformando numa espécie de 'faz-tudo' da rua. Não me considero um líder em nada, sou apenas produto dos esforços que desenvolvo pela melhoria das ruas que represento. Acho até graça quando dizem que poderia ser político", dizia na época.

Mas sempre que a população notava algum problema, era ao jornalista que recorria. "Colaborava também com a prefeitura de Cachoeirinha e Canoas. Eu escrevia pra lá pedindo para arrumar a 'rua tal', pois os moradores vinham para Porto Alegre e se queixavam comigo e eu tinha que fazer o que me pediam. Afinal, também depositavam confiança em mim por eu ser jornalista. Sempre que acontecia um crime ou havia uma denúncia, davam um jeito de me chamar porque sabiam que a matéria iria parar no Correio do Povo."

Memórias de uma vida

Um espaço de quatro metros quadrados é utilizado pelo jornalista como quarto e sala de redação. Quem passa pelo local encontra na parede um recorte de papel com a inscrição 'O Cacique', indicando que lá é feita a produção das notícias para o informativo. Antes desta indicação, quem passava pelo local encontrava a seguinte plaqueta: 'Ó Deus, livrai-me dos mentirosos!'.  Mas a sentença teve que ser substituída a pedido dos diretores.

Uma escrivaninha, uma cama, uma cadeira e uma máquina de escrever dividem o espaço com inúmeros exemplares de jornais e recortes de matérias. Hermínio guarda todos estes papéis com carinho. Os recortes resistem aos efeitos do tempo e são bem mais que papéis, são memórias de uma vida. As infalíveis colaborações aos veículos da Caldas Júnior, exemplares de A Gazeta de Esteio, do Assetur Informativo e de O Cacique estão entre o monte de papéis.

Razão de viver

"Jornal é pior que mulher, depois que vicia não tem jeito", explica. Foi em outubro de 2005 que Hermínio d'Andréa fez uma parceria com o também jornalista Maicon Bock, 26, para lançar um informativo para os moradores do Asilo Padre Cacique. A idéia surgiu a partir de uma proposta dos diretores da entidade, Júlio César Pinto e Cristina Mesquita, que queriam tirar o jornalista do abatimento. "Os diretores perguntaram se eu tinha coragem e eu disse que sim, mas ainda estava meio deprimido e com a vista fraca. Mesmo assim acabei aceitando o convite", afirma. Hoje o jornal é bem recebido pelos moradores, mas Hermínio lamenta e fica triste toda vez que vê alguém jogando fora. "Chega a doer no coração", diz. Ele também é colunista do informativo e acredita que muitas pessoas de fora do asilo vêm até a instituição para buscar exemplares em função de sua coluna.

Não por acaso, o amor pelo jornalismo é o que lhe dá forças para prosseguir com sua jornada. Além de ser motivo de orgulho, o singelo informativo tornou-se a razão do seu viver. Por mais que o corpo tenha deixado de ser vigoroso, os olhos tenham enfraquecido e a pele tenha perdido a elasticidade, Hermínio não perdeu a fé, a força nem a vontade de viver. Lembra Olavo Bilac: "não choremos, amigo, a mocidade! Envelheçamos rindo. Envelheçamos como as árvores fortes envelhecem". E é isto mesmo: assim como os jacarandás da Praça da Alfândega, Hermínio permanece, firme e forte, ainda a tempo de sentir a brisa, aproveitar o sol, contemplar a paisagem e apreciar o perfume das flores, como faz questão de registrar.

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