Rosane Frigeri: Uma ouvinte de histórias

Do dia a dia na reportagem às atividades como voluntária, a jornalista discorre sobre a arte de escutar o outro

Rosane Frigeri - Reprodução/Arquivo pessoal

O Correio do Povo não seria o único trabalho da guria de 17 anos que saiu de Caxias do Sul para cursar Jornalismo na PUC, em Porto Alegre. Mas, certamente, seria o emprego que marcaria sua carreira, lhe daria experiência e a transformaria na profissional e também na pessoa que é hoje. A menina lia as páginas do periódico, que era assinado pelo seu Antonio Frigeri e pela dona Érica Therezinha Arenhart Frigeri, chegando todos os dias na casa da família, e sonhava: "um dia quero trabalhar nesse jornal". E não é que ela sabia mesmo das coisas?

Aproximadamente cinco décadas depois, Rosane Frigeri pode contar por mais de hora sobre as histórias vividas na redação da Caldas Júnior. E foram tantas, que faltariam páginas para descrever, mas, claro, isso se a eterna repórter não soubesse resumir tão bem as mais interessantes. Ela relembra com nostalgia - porém, sem clima melancólico - como realizou o sonho de conquistar a vaga na sucursal de Porto Alegre do jornal, após recusar uma primeira oferta de atuar na praça de Caxias do Sul e apostar na espera por uma oportunidade na Capital. A infância e a adolescência de muita alegria, festas e amigos foram o suficiente de Serra: ela tinha ânsia de explorar novos ares.

E conseguiu. Ganhou espaço no jornalismo porto-alegrense e passou, ao longo de sua trajetória, por locais como o Museu de Comunicação do Rio Grande do Sul, a seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), o Senac, a Revista Voto e órgãos governamentais. No entanto, a jornalista é categórica ao afirmar que, apesar de todo o carinho pelos outros ambientes de trabalho, foi no Correio do Povo que cresceu como profissional. Cada degrau que galgou, passando por todos os níveis de cargos para repórteres, inclusive fazendo matérias especiais, a fez chegar à chefia. Foi, então, que aprendeu a comandar e se divertiu a cada história que um repórter trazia para a redação, instigando sua memória das coberturas externas. "Para mim, o Jornalismo é uma grande diversão", observa Rosane. 

Até hoje, a profissional conserva amizades feitas no tradicional periódico gaúcho, com as quais dividiu a rotina - na verdade, a falta dela - de uma imprensa 'raiz', na qual era preciso correr atrás dos preciosos furos de reportagem. Tudo isso em meio a uma redação com muita fumaça de cigarro, ritmo frenético e referências para sua carreira. Sim, as inspirações da jornalista não estavam em São Paulo, Rio de Janeiro ou nos noticiários internacionais. Cláudio Thomas, Marcelo Rech, Ema Belmonte e Denise Nunes foram alguns dos colegas da Caldas Júnior que a ensinaram, de diversas formas, e dos quais lembra de uma forma afetuosa - alguns mantendo o contato e a proximidade, seja para tomar um vinho, assistir a um jogo do Juventude (seu segundo time do coração, após o preferido: Corinthians) ou passear na praia.

Repórter maluca

Não entendeu errado quem leu a retranca sobre Rosane e sua vivência na reportagem - e também não é um julgamento. A própria profissional se define como "uma repórter maluca". E ela explica o adjetivo que atribui a si mesma, contando do trabalho que deu, em muitas ocasiões, a colegas fotógrafos. O motivo? As ideias ousadas de ir a lugares que não eram comumente visitados, buscar fontes inacessíveis e fazer perguntas audazes. Ela cobriu desde um desfile de escola de samba - como integrante da agremiação - ao Pantanal. Atualmente, a facilitação de contatos e entrevistas por meio da internet e das redes sociais, meio em que a profissional também tem conhecimento, não fornecem as mesmas experiências que teve quando saía para a rua e reportava Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o mundo a partir do que via, ouvia e sentia.

Temas locais, nacionais e internacionais fizeram parte do dia a dia da jornalista. A guria, que começou a trajetória jornalística escrevendo para a faculdade sobre um asilo de idosos, por incentivo do professor Marques Leonam - outra influência na profissão -, esteve em países e continentes diferentes cobrindo os mais diversos assuntos. Mas, entre as viagens, a que guarda maior carinho foi para a África do Sul. Há muito, a jovem serrana, que se formou em 1986 na PUC, desejava conhecer o continente africano. Eis que a pauta surgiu e Rosane partiu em uma cobertura com direito a tudo que esperava, incluindo um safári pela savana do local.

Muitas das vivências na reportagem foram pautadas pelo que considera sua maior qualidade: a determinação. Nas buscas por boas histórias, o ímpeto de conseguir extrair o melhor das fontes a colocou - junto com alguns colegas - em situações atípicas. Este foi o caso de uma matéria sobre o tráfico de drogas na Capital. Rosane tinha como fonte o traficante Humberto Luciano Brás de Souza, o Carioca, conhecido comandante do comércio ilegal de entorpecentes no Morro na Cruz, na zona Leste. Uma arma apontada para sua cabeça foi a recepção que teve no local, quando buscava a fonte. Junto disso, relembra a ameaça: "Se a polícia 'bater' aqui, tu morre". Porém, a vontade de contar o que ocorria ali foi maior que o medo.

Definitivamente, temor nunca combinou bem com Rosane. Quando seu chefe a enviou para fazer matéria sobre uma comunidade indígena no Cantagalo, em Viamão, ela não pensou duas vezes. Chegando lá, a entrevista com o cacique corria bem, no entanto, uma dúvida assolava a jornalista. Foi quando ela decidiu questionar: "O que fazem depois das 18h, se não tem luz, nem televisão?". O líder do grupo não gostou nada do questionamento, considerado muito íntimo sobre a vida dos locais e, bastante ofendido, ameaçou-a, encerrando a conversa. Mais uma vez, o fotógrafo que a acompanhava esbravejou sobre a audácia da pergunta, mas Rosane apenas sorria, pois, em vez de temer, achava essas situações muito divertidas.

Chefe exigente

E a sensação de que fazer Jornalismo era se divertir não a abandonou quando se tornou chefe de reportagem do jornal.  Sabe, porém, que o cargo não é feito apenas de 'flores' e, nesse período, muitos conheceram o que considera seu maior defeito: a exigência. Rosane relembra que a pressão da época era grande para conseguirem a manchete do dia, antes da concorrente Zero Hora. Com isso, sempre quis que seus repórteres dessem 100% de determinação, assim como fazia quando estava na rua. Ela recorda a frase de uma ex-colega e amiga que a marcou. "A Denise [Nunes] me disse uma vez que eu devia parar de achar que todos seriam como eu e se jogariam no mato ou no barro se fosse preciso, pois nem todo mundo é assim".

Apesar de acreditar que alguns repórteres mantiveram mágoa de seu período na chefia, a profissional garante, satisfeita, que fez mais amigos que inimigos. Sobre os frutos do esforço na liderança, ainda destaca alegre os prêmios conquistados, os quais atribui ao trabalho em equipe. Mas, a trajetória, saudosamente recordada, teve de se encerrar após mais de 15 anos, quando, conciliando mais de um emprego - já um hábito - e devido ao adoecimento de sua mãe, Rosane deixou o Correio do Povo.

A cobertura do impeachment

Engana-se quem pensa que o auge da carreira de Rosane, que pouco fala da vida pessoal, foi a chefia de reportagem. Pelo menos, não foi assim aos olhos dela. A paixão por ouvir e contar histórias não permitiu que ela se sentisse completamente realizada dentro da redação. A profissional garante que, apesar de ter se sentido grata e aceitado o posto de liderança na época, o ápice foi como repórter. E, dentre as tantas coberturas, responde, segura, sobre qual mais a marcou: o acompanhamento jornalístico do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. "Foi meu grande desafio", assegura.

Durante o momento histórico, ocorrido em 1992, que retirou do posto um presidente pela primeira vez no Brasil e na América Latina, Rosane viajou mais de uma vez a Brasília, para acompanhar e reportar os desdobramentos do caso. Além de um fato inédito, ela teve que lidar com dificuldades típicas de um jornalista que chega em um novo ambiente, principalmente o cenário político da Capital Federal: muitos profissionais locais já estavam acostumados com as fontes, os ambientes, os procedimentos. A gaúcha estava "de gaiata". Mas, lembra da determinação? Pois então, ela burlou as adversidades e foi a correspondente do Correio do Povo ao longo do processo.

Foi ao voltar desta cobertura que a empresa entendeu que já havia atingido o apogeu da reportagem e a promoveu. Não foi exatamente o cargo de chefia, porém o tempo em Brasília despertou, sim, um desejo em Rosane: estar lá, desfrutando de mais daquele dia a dia que experimentou por apenas alguns meses. Entretanto, essa é uma das vontades que ficou na lista de pendências na vida da jornalista. As dificuldades de mercado nunca possibilitaram que ela explorasse esse sonho. Agora, já distante da profissão, o coração de repórter revela: "Se me oferecem uma oportunidade em Brasília, não penso duas vezes, arrumo as malas e vou".

Praieira 

"Por um tempo": é assim que Rosane define seu afastamento das atividades jornalísticas. Porém, confessa que ainda faz alguns jobs e que não abre mão de acompanhar as notícias nos veículos tradicionais e no Twitter, diariamente. Contudo, ela não faz mais isso de dentro de uma redação atribulada ou a caminho de uma pauta. É no litoral que a profissional se refugia, para viver em contato com sua outra paixão: o mar. "Não troco a praia por nada", destaca. Em Praia Azul também é onde recebe os sobrinhos e amigos a quem destina todo seu amor, já que não teve filhos e é divorciada, pois acabou por dedicar-se totalmente à carreira.

As histórias continuam presentes, talvez ainda mais do que antes, pois agora ela não precisa mais se preocupar em contá-las, mas apenas em escutar, o que Rosane faz no voluntariado. A matéria feita lá no início da faculdade, que a colocou dentro de um asilo por dias, potencializou o amor pelos idosos e fez a jornalista se descobrir como mais do que uma narradora de causos alheios, mas uma boa ouvinte. Ela acredita, inclusive, que, caso não seguisse o jornalismo, poderia ser psicóloga. Seu tempo como voluntária também é dividido com alguns cachorros de rua, que são alimentados, cuidados e custeados por ela.

Praia, solidariedade, família e amigos ainda dão espaço à literatura na vida de Rosane. Amante da leitura, ela conta, aos risos, que chegou a protelar uma viagem a trabalho ao exterior, no Correio do Povo, pois precisava concluir o último capítulo de um dos volumes de 'As Brumas de Avalon'. Em sua estante, biografias, produções sobre política e ficção coabitam. Mas o encanto por esta arte não se resume ao consumo: a jornalista ainda pretende escrever seu próprio livro. Convencida de que tantas vivências precisam ser compartilhadas, admite que ainda esbanja energia e espera publicar essa obra e realizar muito mais nos próximos anos.

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