O compromisso de duvidar

Por Daniela Sallet, para Coletiva.net

Daniela Sallet - Crédito: Nilton Santolin

Estou entre os que acreditam que não há o que uma conversa sincera não resolva. Tentando exercitar essa premissa, tenho escutado argumentos muito distintos da minha maneira de ver o mundo. Quando sinto que vale a pena "trocar uma ideia", que serei ouvida da mesma forma que escuto, procuro dedicar um tempo ao assunto. É a vida real inspirada em algo que fiz durante mais de vinte anos no telejornalismo: para contar uma história é fundamental se apropriar dela, antes de transformá-la em uma reportagem com áudio e vídeo para a TV. 

Essa vontade de praticar a empatia tem seu preço e seus abalos. Nos fatídicos dias pós eleição de 2022, precisei ouvir de pessoas próximas coisas do tipo: "te prepara porque algo grave vai ocorrer até o dia 20". Nada acontecia, a data do apocalipse mudava e nada outra vez. O ápice foi a conversa com uma interlocutora que jurava que o presidente eleito tinha uma conta milionária no Banco do Vaticano. Quando expliquei que o banco já havia publicamente desmentido a informação, ela retrucou: "E quem disse que dá para confiar no Banco do Vaticano?" Consigo lembrar precisamente a pausa dramática neste diálogo, um típico caso em que foi impossível furar a bolha.

O WhatsApp se tornou esse território nebuloso. Então, adotei como regra deixar claro a quem quer que enviasse algo absurdo que as mensagens eram inventadas. Mostrava o trabalho das agências de checagem de notícias e fazia perguntas simples: quem te enviou o vídeo? quem criou o vídeo? tem algum selo ou logomarca de entidade ao final? Invariavelmente, os vídeos não eram assinados, tinham mensagens sem fundamento e manipulações grosseiras daquelas "como alguém consegue acreditar nisso?". Não só acreditavam, mas se abasteciam de informações apenas pelo celular, desprezando os veículos de comunicação. A essa altura, minha paciência para argumentar já andava esgotada e optei por uma fala curta para encerrar o assunto: "desconfie de tudo o que você recebe!".

Todo este nariz de cera (como chamamos no Jornalismo a introdução ao assunto principal) para dizer que me sinto confortada com a ação inédita da Associação Riograndense de Imprensa, entidade que tenho a honra de fazer parte. Trata-se da campanha "O Direito e o Dever de Duvidar", com o propósito de alertar a população sobre a crescente disseminação de notícias falsas. É uma mobilização de combate à desinformação, prática que ganha dimensões ainda mais preocupantes em um ano eleitoral como este 2024.  

A ARI, do alto dos seus quase 90 anos de atuação, está propondo: "duvide do que você vê, ouve e lê". Com este slogan provocativo, a entidade lembra em seu Manifesto que não basta apenas duvidar. É preciso "contextualizar, verificar, investigar o que está por trás de cada postagem". Para esclarecer qualquer questionamento, o cidadão precisa fazer a sua parte buscando informações no "Jornalismo profissional, que também não é dono da verdade, mas a tem como referência e propósito".

Porque o Jornalismo profissional é tão importante? Porque jornalistas e empresas cumprem regras e podem ser responsabilizados civil e criminalmente por notícias falsas e suas consequências. Uma redação é feita por muitos profissionais, que recebem as informações, investigam, conferem com variadas fontes, confirmam tudo antes de publicar. Acima de tudo, está o grande patrimônio do jornalista que é a sua credibilidade. Inventar, caluniar, mentir é um tiro no pé, o equivalente a matar a própria galinha dos ovos de ouro. Simples entender que um jornalista sem credibilidade não terá onde atuar. Divulgar mentiras e notícias falsas seria como um engenheiro errar de propósito os cálculos de uma obra, comprometendo a estrutura e a segurança. Qual o profissional sério que planeja macular o currículo?  

O que a Associação Riograndense de Imprensa propõe é uma campanha de promoção da cidadania. As pessoas precisam conhecer e entender a engrenagem das notícias. Como acontece no Jornalismo profissional e como acontece com as informações falsas, que qualquer pessoa mal intencionada pode produzir. Ainda mais com os avanços da Inteligência Artificial que permite a manipulação de vídeos e áudios de forma convincente. Você vê um astro de cinema fazendo algo que ele não faria de sã consciência em frente a uma câmera? Há enorme possibilidade de que seja falso, então, duvide. Um político dizendo algo sem nenhuma coerência com sua trajetória? Duvide outra vez e investigue. Provavelmente algum eficiente aplicativo foi usado para enganar e manipular.

Se tudo está ao alcance da mão, filtrar as notícias também pode ser questão de alguns toques na tela. Primeiro, é importante ter a pulga atrás da orelha e questionar qualquer mensagem controversa que chegue nos grupos de mensagens. Em seguida, checar a informação em algum portal profissional de notícias, ali mesmo, no celular. Dá para acessar mais de um veículo, comparar as notícias e tirar as próprias conclusões. Esse processo tão necessário está ganhando o nome de Educação Midiática, veja só, a tão necessária Educação! Como em qualquer desafio que se proponha a mudar o mundo para melhor, aqui também o compromisso tem que ser de todos. Somos parte de uma geração que conhece de perto o efeito devastador das notícias falsas. Ainda temos chance de defender a informação baseada na realidade, um pilar indispensável em uma sociedade democrática. Como eu dizia, "desconfie". Como acertadamente sugere a ARI, "duvide do que você vê, ouve e lê". 

Daniela Sallet é vice-diretora de Meio Ambiente da Associação Riograndense de Imprensa (ARI)

Comentários