Arry, o Encanador

Por J. A. Moraes de Oliveira Desde que chegamos nesta cidade, um longo desfile de fornecedores passou por nossa casa. Foram eletricistas, marceneiros, tapeceiros, …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Desde que chegamos nesta cidade, um longo desfile de fornecedores passou por nossa casa. Foram eletricistas, marceneiros, tapeceiros, cortineiros, mecânicos-de-porta-de-garagem e encanadores. Aquele tipo de especialista-em-alguma-coisa, indispensável para manter nossa casa funcionando com o mínimo de dor-de-cabeça. Depois de alguns anos e com muita paciência, acabamos encontrando os personagens certos para serem chamados nas horas de aperto. Só de eletricistas, tentamos seis. Marceneiros, uns três. Mas a persistência valeu. Hoje, nossos fornecedores são amigos da casa. E alguns, agradáveis surpresas.


Como Arry, o encanador.


Assim mesmo, com "r" duplo e sem o "H" de Harry. Certa vez o chamei de Ary, fui corrigido e nunca mais esqueci. Quando ele chega em nossa casa, deixa os sapatos do lado de fora da porta.


E justifica, apontando os sapatos lustrados e limpíssimos:


"Não se deve trazer Schmutzfleck da rua para dentro de casa".


***


Arry nasceu em uma comunidade de colonos alemães que, por mais de três gerações, cultivam parreirais nas encostas do rio Caí. Até hoje ele mora na mesma casa de pedra e de tábuas de pinho, que foi erguida pelos avós.


Quando Arry tinha 15 anos, a vida da família mudou com a chegada da luz elétrica e, logo após, da água encanada. Todos se animaram com a novidade, mas o pai de Arry reclamou por ter que aposentar os lampiões e aterrar o poço que ele mesmo havia furado. Dizia não confiar em lâmpadas que acendiam sem querosene nem em torneiras que jorravam água sem estarem ligadas ao poço.


Arry foi trabalhar na companhia que instalava água e acabou aprendendo a profissão de encanador, que o mantem ocupado até hoje. Mas aprendeu da vida muito mais do que instalar torneiras e desentupir canos.


As surpresas começaram quando espiei para dentro de sua sacola e vi um pequeno e manuseado livro entre suas ferramentas.


Era a "Ode a Alegria" de Schiller, no original. E escrito em caracteres góticos. Mais tarde, para aumentar meu assombro, enquanto trocava um cano debaixo da pia de nossa cozinha, Arry assoviava baixinho um lieder de Schubert.


***


Eu gosto de conversar com o Arry; às vezes até invento um entupimento de pia, apenas para ouvi-lo contar estórias da colônia do Rio Caí. Fico imaginando se meu professor no Instituto Goethe entenderia seu alemão renano e o que o Irmão Otão, que tentava me ensinar filosofia no Rosário, diria de suas tiradas sobre a vida e as coisas do cotidiano.


Algumas frases de Arry que consegui anotar:


" Quando uma pessoa me diz que está em paz com sua consciência, sei que ela não tem boa memória".


"Quem ganha com a poluição? O senhor sabe que ninguém faz nada que não dê lucro. Então, me diga - porque as pessoas jogam lixo no Rio Caí?".


"Quando eu era criança, cheguei à conclusão de que o segundo rato que chega na ratoeira é mais esperto do que o primeiro".


"Eu gosto de meu trabalho. Mas quando chega a hora tal, eu paro e vou ter com minha família. Trabalhar demais é como perseguir o vento. A gente cansa e nunca chega lá."


"Quando eu quero entender uma pessoa, presto atenção naquilo que ela não está dizendo. Assim, fica mais fácil saber o que ela pretende".


"Os cientistas mediram a velocidade da luz. Algum deles se preocupou em medir a velocidade da escuridão?".


"Antes de meu pai morrer, eu disse a ele que a maior parte das lições de vida que usei para ser uma pessoa honesta, eu havia aprendido olhando o que ele fazia. E que as melhores lições de todas, foram aquelas em que eu o observava, quando ele pensava que eu não estava olhando".


***


Na semana passada, Arry esteve aqui mais uma vez. Desta vez, o vazamento não era de mentira. Mas ele não precisou mais de 10 minutos para corrigir o defeito. Parecia estar sentindo dores na coluna, pois fez uma careta quando se enfiou debaixo do tanque de roupa.


Quis saber o que ele sentia. Não respondeu. Apenas perguntou se eu conhecia um médico que curasse dores de velho (ele usou uma palavra em alemão que eu não entendi).


Ao calçar os sapatos na saída, completou:


"Eu quero envelhecer com saúde e com alegria. Mas se não é possível ter saúde, há que manter a alegria, pois um velho rabujento é Teufelsarbei.t"


Desta vez eu entendi - ele estava dizendo que o mau humor é obra do demônio.

Comentários