Charles Atlas do Bom Fim

Por J. A. Moraes de Oliveira Máximo Camargo e eu sentávamos na primeira fila na 3a. série do Ginásio Rosário e tínhamos as piores …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Máximo Camargo e eu sentávamos na primeira fila na 3a. série do Ginásio Rosário e tínhamos as piores notas da turma em Matemática e Geografia. A primeira fila não era um privilégio - era ali que os irmãos maristas colocavam os alunos distraídos e conversadores, bem à vista do olhar vigilante do irmão-regente.


No entanto, no quesito educação física, Máximo era melhor do que todos nós - tirava sempre dez, superando até mesmo as médias gerais dos dois melhores alunos da classe, o "italiano" Telmo Seganfredo e o "alemão" Diefenthaeler.


Máximo gostava de provocar a turma, usando uma camiseta justa na hora da saída do Colégio Bom Conselho, pois a tal camiseta realçava seus músculos, atraindo os olhares das meninas.


O fôlego de atleta de Máximo também incomodava. Enquanto mal conseguíamos dar uma única volta ao redor do pátio do recreio, ele corria umas quatro ou cinco, mantendo um sorriso no rosto magro e fino.


Claro que, assim, ele ganhava a inveja dos meninos da turma - inclusive a minha. Até o dia em que ele notou minhas notas baixas em Geografia e ofereceu a coleção de mapas-mundi de seu pai, para me ajudar nas lições.


Juntei os cadernos e fui até sua casa, na parte baixa da Rua Ramiro Barcelos, no Bom Fim. Quando ele abriu as portas da garagem, esqueci minhas notas em Geografia.


Os Camargo não tinham carro e a garagem estava ocupada por aparelhos de ginástica e halteres e barras de peso de vários tamanhos. Fiquei admirando tudo aquilo, enquanto Máximo se vangloriava de levantar pesos todos os dias, das 6 às 8 da manhã.


Eu havia descoberto o segredo dos músculos e do fôlego de meu colega.


Máximo me mostrou a coleção dos livros de Charles Atlas, contando que ele havia sido um magrela na juventude e praticara a cultura física com tanto empenho, que chegara ao título de Mister Universo.


Entusiasmado, resolvi experimentar os exercícios. Combinamos que eu começaria às 6 da manhã da segunda-feira seguinte. Subi a Ramiro quase correndo, ansioso para contar a novidade em casa.


Meu pai ainda não havia chegado e fui logo mostrando os livretos de Charles Atlas para a mãe. Ela não deu nenhuma importância:


"Para ficares forte e saudável, não precisas disso - basta um prato de aveia todas as manhãs."


Trocar os halteres por aveia não me agradou e continuei esperando meu pai. Ele chegou, viu os livros em cima da mesa e perguntou:


"Quer dizer que vamos ter um atleta aqui em casa?"


Encaminhou-se para sua poltrona predileta e ligou o rádio Telefunken. Com um estalido, as grandes válvulas começaram a esquentar, enquanto eu contava de meus planos de correr cinco voltas no pátio do recreio.


Ele pensou um pouco, antes de falar:


"Meu filho, esporte é uma coisa abençoada, mas é preciso escolher bem - a gente tem que gostar do que faz. Eu pratiquei remo durante muitos anos. Levantava de madrugada para remar com meus amigos, mas nos divertíamos mesmo no inverno, quando o Guaíba ficava branco de geada. Quando se gosta, os sacrifícios não pesam. Se queres fazer exercícios, deves vencer a preguiça, sair cedo da cama e descobrir qual o esporte que vais abraçar."


E, antes que eu entendesse bem o que ele dizia:


"Faz uma experiência com os tais pesos por uma semana, para ver se vai dar certo. Depois, conversamos."


Naquele momento, o olho mágico do Telefunken brilhou forte e a voz do speaker da Radio Belgrano, de Buenos Aires, encheu a sala, anunciando o noticiário das sete horas e um programa de tangos com la gran cantante Libertad Lamarque.


Os postes de iluminação da rua ainda estavam acesos quando, três dias depois, bati na porta da garagem da casa do Bom Fim. Máximo já havia colado na parede da garagem a lista de meus exercícios para a semana.


Com entusiasmo, agarrei os halteres que iriam mudar a minha vida. Em pouco tempo, estava ofegante e os braços começavam a doer. Respirei fundo, pensei nas meninas do Bom Conselho e consegui completar a primeira série de exercícios.


Uma semana depois, minha mãe me surpreendeu no meio da tarde, dormindo sobre meus livros de Geografia, mas não disse nada. Quando o pai chegou, trocou um olhar de entendimento com ela e perguntou sobre os halteres.


Contei que já chegara até a quinta série de exercícios e que estava gostando muito dos exercícios, mas eu não conseguia mentir, olhando os olhos de meu pai. Ele parecia saber que eu sentia dores em todo o corpo e que estava difícil levantar às 6 da manhã, para erguer pesos que ficavam cada vez mais pesados.


Como que lendo meus pensamentos, ele sugeriu parar com os exercícios por alguns dias, para descansar os braços. Aí, abriu meu boletim da escola, olhou minhas notas e assumiu o ar severo que tanto me assustava:


"Meu filho, mesmo com músculos iguais aos de Charles Atlas, não vais muito longe na vida com estas notas. Deves te concentrar nos estudos para passar de ano. Depois, vamos procurar um esporte que te faça feliz sem castigar o corpo."


Durante o resto do semestre mergulhei nos livros e cadernos, até conseguir decorar as insondáveis equações de Matemática e os nomes de todas as capitais mundiais.


Afinal, inflado de orgulho, levei para meus pais o boletim de fim-de-ano.


Não havia ali nenhuma nota escrita com tinta vermelha.


Meu amigo Máximo, mais uma vez, tirou dez em Educação Física, porém as outras notas baixas o reprovaram e ele teve que repetir a 3a.série.


Como castigo, seu pai trancou a garagem com os halteres e todos os livros de Charles Atlas.


E ele nunca mais foi visto esperando a saída das meninas do Bom Conselho.

Comentários