Complexo de Nero

Por Najar Tubino Foi no ano 64 da era cristã que aconteceu um grande incêndio em Roma. O povo culpou o imperador Nero, apaixonado …

Por Najar Tubino

Foi no ano 64 da era cristã que aconteceu um grande incêndio em Roma. O povo culpou o imperador Nero, apaixonado por música. Ele colocou a culpa nos cristãos, que eram uma minoria na época. Mas ficou a imagem de incendiário do imperador, que se suicidou quatro anos depois, ao abandonar a linha de frente do seu exército.


Ao ver diariamente as imagens de incêndios nos parques nacionais, como na Chapada dos Guimarães, a 60 km de Cuiabá - queimando desde o final de agosto -, ou no Parque Nacional de Carajás, no Pará, penso que os brasileiros, principalmente sulistas, têm um "complexo de Nero". É óbvio que isso tudo tem uma relação econômica, pela posse da terra, pelo crescimento da fronteira agrícola e a implantação de um projeto tecnológico de uma monocultura no Brasil, de sul a norte.


O historiador José Augusto Pádua trouxe à tona esta discussão, a partir do modelo da agricultura implantada antes da independência, e que se seguiu até a abolição da escravidão.


Ele reuniu 150 textos de 50 autores entre os anos de 1786 e 1888, no livro "Um sopro de destruição". Um dos autores citados é José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como o "patriarca da independência", nos livros de história.


- A Natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados. Nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas ou mal aproveitadas. Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos paramos e desertos áridos da Líbia. Virá então este dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos.(Representação à Assembléia Constituinte e Legislativa do império do Brasil sobre a escravatura, 1823).


Postura Parasitária


José Augusto Pádua define bem a situação:


-As técnicas produtivas utilizadas no Brasil, de maneira geral, foram descuidadas e extensivas, baseadas em uma postura parasitária frente à produtividade do mundo natural. É provável que a onipresença das queimadas tenha sido o símbolo maior dessa mentalidade. Os colonizadores multiplicaram o impacto das tecnologias indígenas tradicionais, como no caso da coivara- roça e queima em pequena escala - ao aplicar o fogo em espaços muito mais extensos e com intervalos de tempo muito menores. A queima das florestas e campos foi praticamente o único método de preparo da terra para o plantio e a criação adotado no país até o final do século XIX.


O que dizer das queimadas atualmente, quando o índice de incêndios nos parques nacionais aumentou 43% este ano? Nove mil focos, em nove dias de setembro. Quinze por cento do Parque da Chapada dos Guimarães destruídos - são mais de 20 mil hectares. Existem outros fatos. Muitos proprietários continuam dentro dos parques, alguns não foram indenizados. Outros não querem sair. O fogo sempre vem do "entorno", da vizinhança.


É preciso esclarecer o seguinte. Um pequeno produtor queima o mato para ampliar a sua área de plantio. Um grileiro queima floresta em terra pública porque vai vender para alguém. Um outro proprietário queima o mato porque as multas do Ibama não funcionam. Ele tem cinco anos para enrolar o pagamento. Em um levantamento realizado em 2005 no Mato Grosso - estado campeão em queimadas -, pela ONG Amigos da Terra, constataram que de R$ 15,6 milhões de multas notificadas em 2004 no estado, apenas 0,03% tinham sido pagos - R$ 4.680,00. É uma piada trágica. Sem falar da falta de fiscalização, de gente. Os grandes incêndios, como aconteceu em Roraima em 1998 - o maior da história, que queimou 14 mil quilômetros quadrados - só recebem reforço no combate quando viram manchetes.


Queimando dinheiro


Outra coisa: nenhum proprietário organizado, que cultiva lavoura ou pastagem, queima o seu negócio, porque simplesmente, estaria queimando dinheiro. Quem queima é porque tem pastos degradados, que já não produzem mais nada e são reforçados pelas cinzas (potássio) e conseguem crescer um pouco mais com a chegada das chuvas. O solo é formado por uma vida intensa de microrganismos, que fixam nitrogênio. O nitrogênio evapora com o fogo, as bactérias e os fungos morrem. Desarticula a vida do solo.


O que regula o aumento das queimadas no norte, principalmente, é o preço da saca de soja, que esta semana alcançou os R$ 29,00 no Mato Grosso.Em março do ano passado, na pior crise da região, uma saca de soja custava R$ 14,00. A importância do preço da soja é por se tratar da moeda local: se compra qualquer coisa pela soja que será colhida no futuro. Incluindo terra. Quanto mais sobe o preço, mais valor agrega à terra.


Assim como os colonizadores portugueses que chegaram ao Brasil, proprietários de áreas minúsculas, até menos de um hectare, e se defrontaram com uma floresta rica e parecendo inesgotável, os sulistas chegam ao Mato Grosso e ao Pará com a mesma visão colonial. Primeiro:não sabem que estão dentro da floresta amazônica. Segundo: não conhecem a vegetação, não têm mais nenhum tipo de visão sobre o significado da floresta, porque não convivem com o mato há gerações. Não conhecem nem a importância dos produtos, hoje comercializados mundialmente.No máximo, vendem as madeiras mais nobres e tocam fogo.


Talvez José Bonifácio Andrada e Silva tenha feito um discurso apocalíptico, mas extremamente lúcido. Seguindo nesse ritmo, com uma redução no desmatamento, como registram as estatísticas, porém com números que atingem 14 mil quilômetros quadrados anuais, além de 20% já limpos, o que restará da Amazônia em 2023, quando o discurso completará os 200 anos?

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