Em memória a Brizola

Por Emanuel Gomes de Mattos* No dia 11 de setembro de 2001 estava na redação do Coletiva.net finalizando o artigo abaixo quando assisti, ao …

Por Emanuel Gomes de Mattos*
No dia 11 de setembro de 2001 estava na redação do Coletiva.net finalizando o artigo abaixo quando assisti, ao vivo e a cores, os terroristas arremessarem dois aviões contra o prédio do World Trade Center, episódio que modificou a história recente da humanidade. Tamanha irracionalidade chocou-me a tal ponto que permaneci exatos dois anos sem escrever uma linha.
Hoje, impactado pela morte de Leonel Brizola, pedi licença para republicar esse artigo, mantendo a data original. Tomei a iniciativa porque quando resgatei o melhor do que a imprensa local produziu sobre os 40 anos da Legalidade, o fiz principalmente como homenagem em vida ao grande personagem daquela heróica resistência, sem dúvida, o maior exemplo de paixão pelo Brasil.
11/09/2001
O dia em que o pau quase comeu
Ao completar 40 anos, a Campanha da Legalidade, episódio ocorrido entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse do seu vice, João Goulart, proporcionou um magnífico resgate da história recente do Rio Grande, graças ao altíssimo nível da cobertura jornalística por parte dos meios de comunicação do Estado.
A resistência contra o golpe armado pelos ministros militares, iniciada no Sul pelo então governador Leonel Brizola, virou saga no relato dos principais envolvidos. Ao abrir generosos espaços em suas edições, cada veículo contribuiu para tornar públicos fatos que corriam o risco de nunca mais serem revelados.
É importante destacar o quanto era oportuno e necessário esse resgate. Oportuno porque talvez tenha sido a derradeira chance para alguns personagens deixarem seus depoimentos registrados. Foi o caso do ex-piloto de Jango, Manoel Leães, que em 1964 transportou Brizola da praia de Cidreira para o exílio no Uruguai, e do ex-presidente da Associação Riograndense de Imprensa, Alberto André, ambos falecidos em agosto.
O resgate era também necessário porque a Legalidade passou praticamente longe das páginas da grande imprensa durante os 20 anos em que vigorou a censura imposta pela ditadura militar. E depois disso, Brizola, o epicentro de tudo, vinha sistematicamente recusando-se a aprofundar o assunto. "Tenho sido muito resistente em recordar, rever, documentar todo esse episódio", admitiu ao Jornal do Comércio.
De fato, até pouco tempo entrevistar Brizola sobre a Legalidade era tarefa de gincana. Como ocorreu em 1991, no aniversário de 30 anos do movimento. Na época, o repórter do Correio do Povo, David Coimbra, acampou dois dias, das 7 às 24 horas, no Palácio das Laranjeiras, sede do governo do Rio de Janeiro, para arrancar um depoimento exclusivo de Brizola. Mesmo assim, David foi constrangido a perguntar por telefone, na ante-sala, enquanto o governador respondia em seu gabinete.
Depois, o assessor de imprensa de Brizola copiou as anotações do repórter para posterior aprovação e jogou o texto original no lixo. Mas David recolheu o material e, graças a esse expediente, pôde redigir nove páginas, publicadas durante uma semana, que renderam um Prêmio ARI ao Correio do Povo e provocaram uma saia justa em Zero Hora, que não conseguiu a entrevista.
Na atual enxurrada memorialista, quem tinha algo a declarar foi entrevistado ou escreveu a respeito. A data serviu como pretexto ao pré-lançamento do livro "1961/Que as armas não falem", dos jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton, que só chegará às livrarias em outubro. O primeiro capítulo dramatiza ao relatar o recebimento de mensagem de rádio que interligava os quartéis, captada em 28 de agosto de 61, com ordens expressas para "o III Exército compelir imediatamente o sr. Leonel Brizola a pôr termo à atividade subversiva".
A RBS/TV produziu "Legalidade 40 anos", de grande impacto, com texto de Carlos Urbim, fotos do arquivo de Assis Hoffmann, direção de Beto Souza e o descontraído depoimento de Brizola. "Então o pau vai comer", disse em resposta à ameaça do Ministro da Guerra, Odílio Denys. A repercussão desse "Memória Especial" determinou que o programa fosse reapresentado.
Entre os jornais, o Correio do Povo publicou caderno especial, dia 25 de agosto, data da renúncia de Jânio, repercute o espanto provocado no país e no mundo e finaliza com entrevista em que Brizola dá seu diagnóstico sobre Jânio: "Minha convicção é a de que ele tinha distúrbio. Houve um episódio em que estive com ele que ilustra isso. Estávamos sentados num avião e ele me falou com veemência crescente sobre os comprometimentos do Brasil. Acabou falando que, na prática, o país tinha apenas a bandeira e chorou no meu ombro". Patético.
De 26 de agosto a 9 de setembro, o Correio publicou duas colunas diárias, em que recapitulou as principais notícias ocorridas há 40 anos, da renúncia de Jânio até a escolha de Tancredo Neves para Primeiro Ministro no regime parlamentarista implantado.
Flávio Alcaraz Gomes revelou em sua coluna os principais lances da Cadeia da Legalidade, a maior rede de rádio montada no País a partir da requisição da Rádio Guaíba por ordem de Brizola. "Maurício Sirotsky, diretor da Rádio Gaúcha, que havia sido retirada do ar junto com a Farroupilha, surpreendido pelo sucesso da concorrente, pediu a Brizola que a sua rádio também fosse requisitada, atrelando-se à Guaiba, o que foi feito", contou.
O Jornal do Comércio ocupou-se da Legalidade apenas no dia 27 de agosto, mas o fez com muita competência, graças ao seu experiente editor de política, Carlos Bastos. "Para Brizola, a alma do povo gaúcho fez a Legalidade" é o título da entrevista em que o ex-governador não só recorda com detalhes o envolvimento dos militares, como ressalta a influência dos Estados Unidos naquele período que se convencionou chamar de "guerra fria". Hoje Brizola defende a reedição da Legalidade para impedir novas privatizações.
No artigo assinado "Personagens de dias tensos", Bastos depõe sobre o engajamento de quem deveria limitar-se a cobrir os fatos. "Houve uma rebelião dos jornalistas quando Jango aceitou o parlamentarismo. Foi uma entrevista tumultuada, onde ele acabou vaiado pelos profissionais", conta. "Quase a totalidade dos jornalistas que aqui chegaram do Rio, São Paulo, Brasília, e mesmo estrangeiros, acabou aderindo ao movimento".
Outra preciosidade: o jornalista Flávio Tavares credita ao editorial "Golpe é uma bofetada no RS", arquitetado por Brizola e publicado na capa da edição extra de Última Hora em 27 de agosto de 1961, como marco inicial da resistência da população ao golpe.
Já o jornal O Sul compensou a dificuldade de não possuir um substancial arquivo e entrevistou personagens que viveram aquele conturbado período. "Todos os jornalistas que cobriam a legalidade receberam uma credencial e um calibre 38", relatou o antigo setorista do Jornal Última Hora no Piratini, João Batista Aveline. Ao abrir espaço para diversas personalidades, entre elas o ex-deputado João Brusa Neto e o ex-vereador Lauro Hagemann, O Sul prestou uma involuntária última homenagem em vida ao mestre dos jornalistas gaúchos, Alberto André.
"O repórter que ouviu o desabafo de Brizola" é o título da reportagem da página 12, em 24 de agosto. "O governador do Estado fazendo a guarda do Piratini com arma em punho, atento a todos os movimentos suspeitos e sacos gigantes de areia cercando o Palácio para protegê-lo de uma possível invasão militar", é lembrado por André como imagem marcante. No dia 5 de setembro, o advogado, professor, político e jornalista que presidiu a Associação Riograndense de Imprensa de 1956 até 1990, faleceu aos 85 anos.
Mas de todo o material disponível, a série que ocupou 20 páginas de "Zero Hora", entre os dias 20 e 26 de agosto, é imbatível. "Legalidade, a última insurreição gaúcha" é o título que dá início à melhor reconstituição do episódio. Chama a atenção pelo conjunto de informações exibido, mérito da repórter Dione Kuhn, que levou 40 dias entre o trabalho de pesquisa, entrevistas e redação do material.
Desde o início, Dione abriu mão do surrado expediente de pergunta-resposta e transforma Leonel Brizola no fio condutor de uma história da qual é seu principal personagem. A minuciosa entrevista é resultado de muita tenacidade e persistência. Credenciada pela elaboração de série anterior, sobre os 20 anos da volta do exílio, publicada em 1999, episódio dolorido para Brizola, Dione passou a assediá-lo desde o início de 2001 por uma análise mais profunda sobre a Legalidade. Depois de diversos contatos e uma pertinácia de fazer inveja à grande repórter italiana Oriana Fallaci, Dione foi recebida por Brizola, em Montevidéu.
Durante dois dias de muita conversa, o líder pedetista reconstituiu, passo a passo, detalhe por detalhe, os dias mais importantes daquela incrível odisséia em que o jovem governador gaúcho, então com 39 anos, dividiu o exército brasileiro e assegurou a posse de seu cunhado na Presidência, entre tantas façanhas. "O mais impressionante é que toda a estratégia foi montada por ele, tudo partiu da sua cabeça", espanta-se Dione.
Fica claro, por exemplo, que o País esteve perigosamente próximo da Guerra Civil. O Exército e a Brigada Militar dispunham de armamento para 110 mil homens em condições de marchar a Brasília e destituir o Congresso, conforme queria Brizola. Mas ele respeitou a posição de Jango, que aceitou assumir a Presidência sob regime parlamentarista.
"Hoje vejo que eu deveria ter sido mais persuasivo, mais enérgico na minha posição de presidencialismo", avalia Brizola, que talvez por isso considere a Legalidade uma página de bronze e não de ouro na história do Brasil.
O resgate desse assunto é tão recente que durante a sua publicação, a correspondente de ZH em Washington, Lia Luz, descobriu documentos que envolviam a participação dos Estados Unidos na Campanha da Legalidade. A última reportagem acabou sendo "O levante na visão da diplomacia americana", com a divulgação, na íntegra, do primeiro relatório enviado pelo cônsul americano em Porto Alegre.
A série, editada com rara sensibilidade, não tem data para virar livro porque "aí o furo é mais embaixo", adverte Dione, ao lembrar que essa história ainda está sendo escrita. Ela conta uma curiosidade: "Escrevi que a posição assumida pelo III Exército levou o ministro da Guerra, Odílio Denys, a nomear o general Cordeiro de Farias para o lugar de Machado Lopes no comando. O oficial não chegou a entrar em solo gaúcho, pois soube que seria preso".
No dia seguinte à publicação desse capítulo, Dione ouviu o relato de um ex-sargento da Aeronáutica. "O avião chegou a pousar na Base Aérea de Canoas e só depois retornou. Sei disso porque fui eu que o reabasteci", informou o autor do telefonema.
Como se vê, a Legalidade ainda poderá render muita história, se for garimpada por profissionais com o talento de Dione. O atual presidente da ARI, Ercy Torma, recordou, após a morte de Alberto André, que ele tinha uma particularidade que provava o seu interesse pelo trabalho e pela própria vida. "Por qualquer conquista ou acontecimento com alguma pessoa conhecida, ele mandava um cartãozinho parabenizando", lembrou.
Se ainda estivesse entre nós, é possível que Alberto André enviasse um cartão de congratulações para Dione Kuhn. O texto poderia ser semelhante ao que Nick Nolte, na pele de um consagrado colunista do Chicago Chronicle, diz para Julia Roberts, a jovem repórter concorrente do Chicago Globe, quando ambos disputam notícias exclusivas sobre um acidente de trem, no filme "Adoro Problemas":
- Graças a você, lembrei o quanto amo o jornalismo.
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista

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