Entre a Ramiro e a Felipe (II)

Por J. A. Moraes de Oliveira* A família dos Becker morava logo acima, quase na esquina da Avenida Independência. Falavam alemão à mesa e …

Por J. A. Moraes de Oliveira*
A família dos Becker morava logo acima, quase na esquina da Avenida Independência. Falavam alemão à mesa e tinham motorista, copeira e governanta, um luxo desconhecido para o pessoal da Felipe Camarão. Às sextas-feiras de manhã, os Becker recebiam a visita de uma figura estranha, um negro alto e sorridente,vestido inteiramente de branco. Era o fornecedor de um renomado mocotó preparado caprichosamente em uma remota ilha do Guaíba.
Quando contei a meu pai sobre o homem do mocotó, ele pediu ao velho Becker, seu antigo companheiro de remo, que mandasse o homem entregar o mocotó lá em casa na próxima sexta-feira. Quando ele chegou, comemos até nos saciar, meu pai com um grande guardanapo branco no pescoço e minha mãe vigiando a mim e a minha irmã para que nos lambuzássemos o mínimo possível.
Após a sobremesa, minha mãe perguntou pelo preço do mocotó, decretando então que uma vez por semana era demais e que o crioulo de branco passasse apenas uma vez por mês. E desde então, o prato ficou com um sabor de coisa proibida. Algum tempo depois, o negro vestido de branco morreu e eu nunca mais provei um mocotó igual.
Na casa dos Feijó, na Rua Mostardeiro, outra grande alegria de minha infância. Foi quando vi um trem elétrico de verdade, permanentemente montado na garagem da casa. Eram muitos metros de trilhos, cruzamentos, túneis e passagens de nível. Eu nunca imaginara que pudesse existir um brinquedo daqueles. Gastei alguns dias para convencer meus pais que eu poderia melhorar minhas lições de matemática estudando com o Feijó, que sempre tirava dez nas sabatinas mensais, contra meus parcos 4 ou 5.
Ficávamos muito pouco tempo com os livros, pois logo corríamos para a garagem para apreciar, por horas e sem cansar, os trens rodando sobre pontes, túneis e cruzamentos com sinetas e sinais luminosos. Nunca cheguei a ser um bom estudante de matemática, mas aprendi em poucos dias como manejar os controles elétricos do trem elétrico. O que não me serviu por muito tempo, pois os Feijó se mudaram no ano seguinte para São Paulo. E levaram o trem elétrico com eles.
Para o lado da Felipe Camarão, João Teles e Henrique Dias, as seduções eram diferentes - quintais e pomares com árvores para escalar e frutas suculentas para comer a qualquer hora. Eu voltava para casa com as mãos sujas e os joelhos escalavrados, mas cheio de estórias para contar.

A mãe do Davi e do Jayme, dona do mercadinho na esquina da Fernandes Vieira, sempre aparecia com um prato de doces ídiches, que devorávamos sentados nos degraus da pequena casa nos fundos do mercadinho, uma estravagância devidamente ocultada de minha mãe.
Um dia levei para casa uma compoteira com os doces ídiches da Dona Ester.
A mãe, que não tinha aquela família judia em grande conta, os aprovou com um olhar de complacência e me fez devolver a compoteira no dia seguinte, cheia de douradas rapadurinhas de amendoim que eu que tanto apreciava, e que ficavam sempre longe de meu alcance, em grandes potes de vidro no alto do armário de comidas.
Levar aquela compoteira azul até a casa de Dona Ester, sentindo o aroma do amendoim torrado, foi uma das maiores provações de que me lembro naqueles dias na Vasco da Gama.
* J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário.
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