Histórias que o Boró não conta

Por Emanuel Gomes de Mattos O jornalista Mauro Pacheco Toralles completou 30 anos de atividade em um mesmo local de trabalho. Até aí morreu …

Por Emanuel Gomes de Mattos
O jornalista Mauro Pacheco Toralles completou 30 anos de atividade em um mesmo local de trabalho. Até aí morreu o Neves, dirá o leitor. Afinal, quantos somam tempo superior de serviço e sequer têm seus nomes registrados. Por isso, sinto-me obrigado a recorrer até a fatos históricos para justificar essa pequena homenagem.
No dia 1º de outubro, o Boró - apelido pelo qual é conhecido - ultrapassou a barreira de 30 anos na editoria de esportes de Zero Hora. Isso sim é uma façanha. É preciso registrar que não há local nas redações de Porto Alegre mais visado, através de críticas ou elogios, porque ali se escreve o dia-a-dia da dupla que mexe com o coração de todos os gaúchos: Grêmio e Internacional. É o espaço com maior índice de leitura desde seu início, em 1964, quando o espólio da finada Última Hora - fechada depois do golpe militar - renasceu com o nome de Zero Hora.
A propósito desse período, faço parênteses para contar um fato com o objetivo de resgatar a memória de outra grande figura humana. Quando ZH iniciou suas atividades, alguns jornalistas da redação antiga, ligados a partidos de esquerda, não apareceram, pois havia o risco de serem presos. Mas também não deu o ar da graça o bonachão editor de turfe, João Rath Filho. Decidiu posicionar-se contra a ditadura e refugiou-se em Montevidéu num solitário protesto. Foi o que ouvi dele durante as caminhadas noturnas por Buenos Aires, na Copa do Mundo de 78, onde estive pela ZH.
Redator-chefe de Placar, dono de um texto irretocável, Rath possuía o dom de contar histórias com riqueza de detalhes e requinte nas informações, de personagens que davam nomes às ruas até a origem da letra de cada tango. E o fazia com tal graça que seduzia e encantava. Mas tinha uma frase-chave para trazer o viajante de volta à realidade:
- Eu minto bem pra caralho!
Mas volto ao Boró e a seus 30 anos no trepidante setor de esportes de ZH. Ele viu passar pelo setor exatos nove editores, cada um com seu estilo, na seguinte ordem: José Antônio Ribeiro, Antônio Oliveira, Nélson Ferrão, Emanuel Mattos, Nilson Souza, Luiz Zini, Divino Fonseca, Eliziário Rocha e David Coimbra.
Lá chegou como repórter, após iniciar no extinto Diário de Notícias. Logo revelou seu exímio gosto gráfico que até hoje qualifica e diferencia o Esporte das outras seções. Basta ver a solução que deu à página 35 de 11 de outubro, cujo título é "Todas as respostas do Gre-Nal". Ou as cinco páginas dedicadas ao clássico na edição dominical. Nelas constata-se que, embora não assinadas, está presente a obra desse Oscar Niemayer do jornalismo gaúcho.
Quando assumi o Esporte, em 1983, fiz algumas alterações na equipe que já era ótima, reforçando-a com a contratação de Flávio Dutra e Adroaldo Guerra. Mas, principalmente, resgatei Boró, que estava relegado a uma atividade menor. Ele voltou à posição de arquiteto principal das páginas, onde ousava com tal criatividade que certa feita o consultor cubano Mário Garcia, contratado para modernizar o jornal, disse:
- Não sei como esses tipos conseguem, mas as páginas do Esporte estão perfeitas -, reconheceu. Considero essa frase um tributo ao Boró.
Lembro de outra história que marcou nossas vidas. Em 1979, dividíamos a edição de Grêmio e Inter, época em que os repórteres viajavam para as cidades dos times que enfrentariam a dupla Gre-Nal pelo campeonato gaúcho. Durante um trago no bar "Porta Larga", situado ao lado de um bordel, decidimos ser os próximos a botar o pé na estrada a fim de sacudir a poeira da redação.
A mim tocou uma semana entre Pelotas e Rio Grande. De fato, renovei o tesão pela reportagem, tanto que em seguida troquei ZH pela Revista Placar. Mas quando chegou a vez do Boró, ele rompeu o acordo e enviou outro em seu lugar. Com sabedoria, já cultivava o segredo na arte da sobrevivência: pedra que muito rola não cria limo.
Eu, ao contrário, fui um "rolling stone" e rodei por aí: Placar em Porto Alegre e em São Paulo, voltei à Zero Hora, fui a Florianópolis treinar a equipe que lançou o Diário Catarinense, fiz a campanha que elegeu Simon ao governo, passei pela Assembléia Legislativa até novo retorno à ZH, onde trabalhei de 87 ao início de 90, quando fui demitido após firmar dois apedidos publicados no próprio jornal em favor de Lula para presidente.
Na época era algo arriscado. Prova disso é que no momento em que assinava o segundo manifesto, que me era passado pelo falecido Norberto Silveira, Paulo Sant"Ana viu a cena e fez uma frase que poderia ser profética, não fosse ele tão bem informado:
- Estás assinando a tua sentença de morte!
Eleito Collor, fui demitido em pleno gozo de férias. Naquele mesmo ano assumi a Política do Correio do Povo e conquistamos o Prêmio ARI de Reportagem pela cobertura da campanha eleitoral, editoria que Carlos Fehlberg, autor da minha demissão, chefiava na Zero Hora.
Mais tarde, troquei o Correio do Povo pelo Jornal NH, estive na campanha que levou Britto ao governo, circulei entre a TV Educativa e o Palácio Piratini. Nos últimos anos integro o grupo que trabalha em assessorias ou faz "free lancers".
Revelei certos fatos quase esquecidos para estabelecer o contraste: E o Boró? Onde estava Boró?
Pois permanecia exatamente no mesmo lugar. Sua atividade manteve-se inalterada, misto de sobrevivente ou guru, de acordo como cada novo colega via aquele senhor miúdo, de cabelos grisalhos e barba longa. Sobreviveu até ao período agitado de Augusto Nunes, que juvenilizou a equipe e injustiçou alguns profissionais cujos cabelos brancos mereciam maior consideração.
E hoje, enquanto discute a edição diária com Mário Marcos, seu ex-colega de faculdade, Boró acumula novos recordes. Entre eles, o de ter participado da edição de oito Copas do Mundo, uma façanha. Por todas essas razões, tornamos público que nesta terça-feira, 14 de outubro, está reservada uma sala na Churrascaria do Paulo Amorim, o "Portuga", situada na Rótula do Papa, perto do Estádio Olímpico. Lá estaremos reunidos para a festa intitulada "Trinta Anos do Boró no Esporte da Zero Hora".
Já confirmaram presença Evaldo Gonçalves, Nico Noronha, Jones Lopes, Pedro Macedo, Paulo Burd, Wianey Carlet e até o "Chimba", misto de diagramador e filósofo. Talvez Paulo Sant"Ana dê o ar da graça, ele que testemunhou toda história, pois começou na época em que Mendes Ribeiro e Cói Lopes de Almeida chefiaram o Esporte.
Apenas haverá uma ausência: o próprio Boró. Discreto, foge de qualquer comemoração, ainda mais que será o personagem principal. Como faz habitualmente, sairá quase invisível da redação com seu exemplar de ZH enrolado em forma de cone, tocando-o nas mesas por onde passar. E voltará para Eldorado do Sul, onde vive ao lado de Helena, companheira de toda jornada, com quem divide uma bela família e seus animais encantados.
Mas tenha certeza de que saberemos honrá-lo. Cada um contará um caso, certamente original e com boa dose de humor. E ergueremos tantos brindes quanto pudermos para homenagear o mais talentoso jornalista com quem tive o privilégio de conviver.
À tua saúde, Boró!
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista
[email protected]

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