O
objetivo
da reportagem
era
mostrar
a
violência
da
instituição
psiquiátrica
contra
a
loucura
, num
tempo
em
que
hospitais
como
o
São
Pedro tinham
mais
de 5
mil
internos
, repartidos
em
diversas
alas
. No
caso
do
São
Pedro, uma dessas
alas
chamava a
atenção
, a dos
indigentes
. Internei-me
então
como
indigente
para
relatar
o
dia-a-dia
dessas
pessoas
.
Primeiro
, no
entanto
, teria de
ser
admitido na
instituição
como
alguém
com
problemas
mentais
e
poder
assim
conviver
com
outros
500,
como
eu
,
mas
alguns
certamente
em
muito
melhor
situação
.
Fazia
um
mês
e
pouco
que
eu
tinha
retornado da Europa,
onde
durante
muito
tempo
vagara de
um
lugar
para
o
outro
, às
vezes
dormindo
debaixo
de
pontes
na Áustria, na Alemanha
ou
na Suécia. E naquela
época
eu
lia
muito
sobre
antipsiquiatria
, assistindo às
palestras
em
Londres de Ronald Laing
ou
David Cooper,
ou
recuperando as
idéias
sobre
o
coletivo
de Heidelberg,
quando
,
nos
anos
da
contracultura
, os
loucos
tinham se revoltado e
eles
próprios
decidiram
administrar
o
hospício
.
O
repórter
Renato
Pinto
da Silva
me
levou ao
hospital
.
Eu
vestia uma
calça
remendada
com
couro
, uma
jaqueta
do
exército
israelense
que
tinha
encontrado numa
casa
em
Paris e
um
livro
intitulado "
Tratado
Geral
de
Magia
Prática
", do
meu
colega
de
apartamento
em
Porto
Alegre
.
Primeiro
falou o
repórter
que
me
acompanhava, contando à
psiquiatra
que
eu
era
estudante
de
história
,
que
tinha
me
apaixonado
por
uma
menina
e
viajado
com
ela
para
Salvador
, na Bahia,
onde
tínhamos
nos
separado. Voltara a
Porto
Alegre
sem
documentos
,
tinha
me
trancado no
banheiro
e
quebrado
a
pia
,
sem
comer
e
sem
beber
. "
Como
não
tem
família
aqui
e está
sem
documentos
, decidi
que
seria
melhor
interná-lo", disse.
A
psiquiatra
me
olhou
pouco
depois
detidamente
,
me
olhou
novamente
e perguntou, "
você
sabe, Sérgio,
você
sabe
por
que
está
aqui
? "
Eu
olhei
para
o
meu
prontuário
acompanhando
com
o
olhar
na
sua
letra
esquiva
, escrevendo os
números
que
dali
em
diante
seria o
meu
, e perguntei de
repente
um
Ah? de
olhos
bem
redondos
.
Ela
então
me
internou
como
psicomaníaco depressivo. E
ela
estava
certa
,
porque
naquela
época
deveria
estar
mesmo
psicomaníaco depressivo e
ela
apenas
acreditava no
que
estava relatando
meu
amigo
.
Fiquei internado 36
horas
no
hospital
São
Pedro.
Era
para
ficar
mais
tempo
,
mas
logo
me
dei
conta
de
que
1) os
loucos
não
eram
fontes
fidedignas
para
minhas
entrevistas
; 2) a
comida
que
tinham
me
servido
era
de
qualidade
superior
à da
Casa
do
Estudante
; 3) tive
medo
de
dormir
sozinho
no
grande
dormitório
com
500
loucos
e
um
atendente
,
até
porque
me
tinham
dito
,
cuidado
,
muito
cuidado
,
você
vai
dormir
eles
chegam e crã!
Além
disso, uma boa
religiosa
havia
me
roubado
meu
inseparável
Tratado
Geral
de
Magia
Prática
,
onde
fazia
minhas
anotações.
Sair
dali,
portanto
. E revelei: "sou
jornalista
, quero
ir
embora
". A
mulher
me
olhou
com
pouco
interesse
, bateu nas
minhas
costas
com
delicadeza
e falou, "
tudo
bem
,
jornalista
,
mas
agora
desocupa a
enfermaria
e vai
para
o
pátio
tomar
sol
".
Só
então
me
dei
conta
de
que
essas
representações
de papéis
que
os
jornalistas
fazem,
em
busca
de
grandes
reportagens, podem
ser
muito
perigosas, o
que
,
aliás
,
penso
até
hoje
.
Mas
não
fui
tomar
sol
e deixei o
hospital
umas
cinco
horas
depois
.
Quando
releio a reportagem
sobre
o
Hospital
São
Pedro
me
pergunto
por
que
despertou
tanta
atenção
. A
meu
ver
,
como
reportagem,
não
se
sustenta
. Veja
bem
,
ela
se divide
em
duas
partes
. A
primeira
, a
principal
, é a
narrativa
dos
acontecimentos
como
eles
aconteceram,
ou
melhor
,
como
eu
os fui construindo na
minha
cabeça
na
medida
em
que
os vivia
dentro
da reportagem.
Mas
cada
uma das
quatro
reportagens é enquadrada
por
um
texto
aparentemente
sério
,
geralmente
uma
coluna
ao
lado
do
texto
principal
, oferecendo
um
contexto
teórico
para
a
narrativa
. E ao
reler
os
textos
, acho
que
a
narrativa
deveria
estar
sozinha
,
sem
qualquer
contexto
,
por
serem
muito
pretensiosos
meus
enquadramentos.
Mas
também
,
que
se explique: vivíamos uma
época
muito
fora
do
esquadro
.
Digo
quatro
reportagens,
mas
foram
cinco
, sendo a
última
escrita
por
um
psiquiatra
a
quem
fui
entrevistar
e
que
ordenou
que
lhe
deixasse o
texto
escrito
para
ler
depois
. Respondi
que
estava
ali
por
uma
deferência
,
pois
os
jornalistas
geralmente
não
deixam
seus
entrevistados lerem os
textos
que
escrevem, podendo
isso
ser
feito
depois
da publicação.
Já
tinham
saído
duas reportagens. O
secretário
da
Saúde
da
época
,
senhor
Jair
Soares
, conseguira
proibir
a publicação de
fotografias
,
mas
não
do
texto
. E o
psiquiatra
em
questão
era
funcionário
público
.
Ele
certamente
estava
com
medo
.
Como
repeti
que
não
deixaria o
texto
e
que
ele
, se quisesse, entrasse
novamente
em
contato
com
a
redação
,
ele
deu
um
pulo
e gritou "
filho
da puta" na
minha
direção
e agarrou as 12
laudas
que
eu
havia
escrito
.
Quer
dizer
, agarrou a
ponta
, mantive a
pressão
firme
na
outra
ponta
, e ficamos
alguns
minutos
nos
empurrando,
enquanto
ele
gritava "
seu
filho
da puta,
me
entrega
esses
papéis!"
Eu
não
entreguei os papéis ao
psiquiatra
- estávamos no
seu
consultório
e
sua
secretária
pulava de
um
lado
para
o
outro
,
agitada
, exclamando "Ah,
meu
Deus
!"
Eu
até
compreendia a
situação
dele,
pois
tinha
se jogado
sobre
mim
na
presença
de
seu
filho
pequeno
. E
eu
havia
tornado
mais
perigosa a
situação
ao
lhe
dizer
com
calma
: "
mas
o
senhor
está se perdendo
emocionalmente
,
senhor
Psiquiatra
!
No
fim
, disse
que
deixaria a reportagem
com
sua
secretária
,
coitada
,
porque
temia
que
ela
tivesse uma
síncope
, dançando miudinho na
nossa
frente
.
Ele
pareceu
concordar
.
Ela
estendeu as
mãos
, entreguei-lhe as
laudas
,
ele
me
deu
um
chute
e fechou a
porta
do
consultório
com
estrondo
. Voltei
com
fotógrafo
, e
vocês
conhecem os
jornalistas
, muitas
fotos
foram
tiradas
da
secretária
erguendo os
braços
assustados
para
esconder
o
rosto
. E fui
reescrever
a reportagem,
que
,
agora
,
sim
, mostraria o
quanto
eram
humanos
os
loucos
e os
sãos
e o
quanto
gostavam de
inverter
os papéis.
Mais
tarde
, mudei de idéia e a comuniquei ao
senhor
Rui Carlos Osterman,
diretor
da
Folha
da
Manhã
.
Não
,
não
valia
a
pena
, expliquei, a
gente
falava
sobre
a
violência
da
instituição
psiquiátrica
e
não
de
fatos
isolados, individualizando
quem
as praticava.
Por
outro
lado
, muitas
pessoas
telefonaram
para
a
redação
,
como
o
escritor
Erico Verissimo, pedindo
que
a
cena
do
consultório
não
fosse publicada.
Tudo
bem
,
já
tínhamos
decidido
não
publicá-la,
mas
que
o
senhor
Psiquiatra
devolvesse os papéis amarfanhados. E
não
só
o
psiquiatra
devolveu os papéis amarfanhados
como
passou a
noite
trabalhando e no
dia
seguinte
enviou 12
laudas
sobre
o
trabalho
psiquiátrico
no
Rio
Grande
do
Sul
. A
quinta
reportagem foi publicada no
dia
seguinte
e
não
me
lembro de
ter
sido
com
o
meu
nome
ou
com
o
nome
do
senhor
Psiquiatra
.
* Sérgio Capparelli é jornalista e escritor, colaborador de Coletiva.net.