Lembranças da Casa de Loucos

Por Sérgio Capparelli O objetivo da reportagem era mostrar a violência da instituição psiquiátrica contra a loucura, num tempo em que hospitais como o …

Por Sérgio Capparelli

O objetivo da reportagem era mostrar a violência da instituição psiquiátrica contra a loucura , num tempo em que hospitais como o São Pedro tinham mais de 5 mil internos , repartidos em diversas alas . No caso do São Pedro, uma dessas alas chamava a atenção , a dos indigentes . Internei-me então como indigente para relatar o dia-a-dia dessas pessoas . Primeiro , no entanto , teria de ser admitido na instituição como alguém com problemas mentais e poder assim conviver com outros 500, como eu , mas alguns certamente em muito melhor situação .


Fazia um mês e pouco que eu tinha retornado da Europa, onde durante muito tempo vagara de um lugar para o outro , às vezes dormindo debaixo de pontes na Áustria, na Alemanha ou na Suécia. E naquela época eu lia muito sobre antipsiquiatria , assistindo às palestras em Londres de Ronald Laing ou David Cooper, ou recuperando as idéias sobre o coletivo de Heidelberg, quando , nos anos da contracultura , os loucos tinham se revoltado e eles próprios decidiram administrar o hospício .


O repórter Renato Pinto da Silva me levou ao hospital . Eu vestia uma calça remendada com couro , uma jaqueta do exército israelense que tinha encontrado numa casa em Paris e um livro intitulado " Tratado Geral de Magia Prática ", do meu colega de apartamento em Porto Alegre . Primeiro falou o repórter que me acompanhava, contando à psiquiatra que eu era estudante de história , que tinha me apaixonado por uma menina e viajado com ela para Salvador , na Bahia, onde tínhamos nos separado. Voltara a Porto Alegre sem documentos , tinha me trancado no banheiro e quebrado a pia , sem comer e sem beber . " Como não tem família aqui e está sem documentos , decidi que seria melhor interná-lo", disse.


A psiquiatra me olhou pouco depois detidamente , me olhou novamente e perguntou, " você sabe, Sérgio, você sabe por que está aqui ? " Eu olhei para o meu prontuário acompanhando com o olhar na sua letra esquiva , escrevendo os números que dali em diante seria o meu , e perguntei de repente um Ah? de olhos bem redondos . Ela então me internou como psicomaníaco depressivo. E ela estava certa , porque naquela época deveria estar mesmo psicomaníaco depressivo e ela apenas acreditava no que estava relatando meu amigo .


Fiquei internado 36 horas no hospital São Pedro. Era para ficar mais tempo , mas logo me dei conta de que 1) os loucos não eram fontes fidedignas para minhas entrevistas ; 2) a comida que tinham me servido era de qualidade superior à da Casa do Estudante ; 3) tive medo de dormir sozinho no grande dormitório com 500 loucos e um atendente , até porque me tinham dito , cuidado , muito cuidado , você vai dormir eles chegam e crã! Além disso, uma boa religiosa havia me roubado meu inseparável Tratado Geral de Magia Prática , onde fazia minhas anotações.


Sair dali, portanto . E revelei: "sou jornalista , quero ir embora ". A mulher me olhou com pouco interesse , bateu nas minhas costas com delicadeza e falou, " tudo bem , jornalista , mas agora desocupa a enfermaria e vai para o pátio tomar sol ". então me dei conta de que essas representações de papéis que os jornalistas fazem, em busca de grandes reportagens, podem ser muito perigosas, o que , aliás , penso até hoje . Mas não fui tomar sol e deixei o hospital umas cinco horas depois .


Quando releio a reportagem sobre o Hospital São Pedro me pergunto por que despertou tanta atenção . A meu ver , como reportagem, não se sustenta . Veja bem , ela se divide em duas partes . A primeira , a principal , é a narrativa dos acontecimentos como eles aconteceram, ou melhor , como eu os fui construindo na minha cabeça na medida em que os vivia dentro da reportagem. Mas cada uma das quatro reportagens é enquadrada por um texto aparentemente sério , geralmente uma coluna ao lado do texto principal , oferecendo um contexto teórico para a narrativa . E ao reler os textos , acho que a narrativa deveria estar sozinha , sem qualquer contexto , por serem muito pretensiosos meus enquadramentos. Mas também , que se explique: vivíamos uma época muito fora do esquadro .


Digo quatro reportagens, mas foram cinco , sendo a última escrita por um psiquiatra a quem fui entrevistar e que ordenou que lhe deixasse o texto escrito para ler depois . Respondi que estava ali por uma deferência , pois os jornalistas geralmente não deixam seus entrevistados lerem os textos que escrevem, podendo isso ser feito depois da publicação. tinham saído duas reportagens.  O secretário da Saúde da época , senhor Jair Soares , conseguira proibir a publicação de fotografias , mas não do texto . E o psiquiatra em questão era funcionário público . Ele certamente estava com medo .


Como repeti que não deixaria o texto e que ele , se quisesse, entrasse novamente em contato com a redação , ele deu um pulo e gritou " filho da puta" na minha direção e agarrou as 12 laudas que eu havia escrito . Quer dizer , agarrou a ponta , mantive a pressão firme na outra ponta , e ficamos alguns minutos nos empurrando, enquanto ele gritava " seu filho da puta, me entrega esses papéis!"  Eu não entreguei os papéis ao psiquiatra - estávamos no seu consultório e sua secretária pulava de um lado para o outro , agitada , exclamando "Ah, meu Deus !"  Eu até compreendia a situação dele, pois tinha se jogado sobre mim na presença de seu filho pequeno . E eu havia tornado mais perigosa a situação ao lhe dizer com calma : " mas o senhor está se perdendo emocionalmente , senhor Psiquiatra !


No fim , disse que deixaria a reportagem com sua secretária , coitada , porque temia que ela tivesse uma síncope , dançando miudinho na nossa frente . Ele pareceu concordar . Ela estendeu as mãos , entreguei-lhe as laudas , ele me deu um chute e fechou a porta do consultório com estrondo . Voltei com fotógrafo , e vocês conhecem os jornalistas , muitas fotos foram tiradas da secretária erguendo os braços assustados para esconder o rosto . E fui reescrever a reportagem, que , agora , sim , mostraria o quanto eram humanos os loucos e os sãos e o quanto gostavam de inverter os papéis.


Mais tarde , mudei de idéia e a comuniquei ao senhor Rui Carlos Osterman, diretor da Folha da Manhã . Não , não valia a pena , expliquei, a gente falava sobre a violência da instituição psiquiátrica e não de fatos isolados, individualizando quem as praticava. Por outro lado , muitas pessoas telefonaram para a redação , como o escritor Erico Verissimo, pedindo que a cena do consultório não fosse publicada.  Tudo bem , tínhamos decidido não publicá-la, mas que o senhor Psiquiatra devolvesse os papéis amarfanhados. E não o psiquiatra devolveu os papéis amarfanhados como passou a noite trabalhando e no dia seguinte enviou 12 laudas sobre o trabalho psiquiátrico no Rio Grande do Sul . A quinta reportagem foi publicada no dia seguinte e não me lembro de ter sido com o meu nome ou com o nome do senhor Psiquiatra .



* Sérgio Capparelli é jornalista e escritor, colaborador de Coletiva.net.

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