Migração para o imaginário

Por Juremir Machado da Silva Os bons não morrem. Migram para o nosso imaginário. Migrou o irmão Mainar Longhi. A PUC está de luto. …

Por Juremir Machado da Silva
Os bons não morrem. Migram para o nosso imaginário. Migrou o irmão Mainar Longhi. A PUC está de luto. Todos estamos. Luto sentido. Morreu um homem simples, culto, amigo, irmão. Passou a vida tentando melhorar o português de muita gente, inclusive o meu (não se pode acertar em tudo). Quantas gerações de jornalistas foram batizadas por ele na paixão pela língua portuguesa? Ele mesmo tinha perdido a conta. Telmo Flor, diretor de redação do Correio do Povo, e eu fomos alunos do irmão Mainar na mesma época. Luiz Carlos Reche, da Rádio Guaíba, chegou um pouco depois. Aulas inesquecíveis. Lições de amor à literatura e ao jornalismo. Com ele, no apagar das luzes da ditadura militar, lemos o maravilhoso ?Quarup?, de Antônio Callado. Romance que fez muita gente descobrir o Brasil. Mais, bem mais, perceber a existência de vários e conflituosos Brasis. Cultura enfatizada pelo falar pontuado e tolerante do irmão Mainar.
Ninguém esquece tampouco de outros livros que abriu para nós, mesclando gêneros, autores, estilos, horizontes e gostos: ?O Grande Mentecapto? e ?Encontro Marcado?, de Fernando Sabino; ?Um Novo Animal na Floresta?, de José Carlos Oliveira; ?O Centauro no Jardim?, de Moacyr Scliar, etc. Irmão Mainar me aconselhava, em jornalismo, a esquecer o ?etc.? e o ponto-e-vírgula. Como se vê, eu não soube aproveitar as suas lições.
Quando cheguei de Santana do Livramento, na arrogância dos meus 17 anos, com bolsos vazios de dinheiro e alguns centavos de literatura que mal davam para as primeiras conversas capitais, irmão Mainar me mandou ler ?O Vermelho e o Negro?. Não me transformei num Julien Sorel, nem ele o queria, mas ganhei um amigo para sempre.
Lembro-me dele, como todo mundo, na sua sala, atrás de uma imensa pilha de jornais e de papéis de todos os tipos. Desaparecia atrás de uma montanha e recusava-se a jogar algo fora. A palavra era a sua referência e gostava de armazená-la para viver mergulhado nela. Foi uma ilha: cercado de palavras por todos os lados.Certa vez, meu grupo organizou uma chapa para concorrer ao Centro Acadêmico da Comunicação, comigo de presidente (éramos pequenos mentecaptos). Mainar, diretor da Faculdade de Letras, aceitou esconder nossa lata de tinta no seu gabinete. Mas tivemos a péssima e normal idéia de estudantes de pichar as paredes recém-pintadas da faculdade com frases anarquistas. Antoninho Gonzáles, diretor da Famecos, ficou possesso (ou fez de conta). Mainar encontrou mil desculpas para explicar nossa insanidade momentânea. Como punição, aconselhou-me a ler algo instrutivo: ?As Ilusões Perdidas?, de Balzac. ?Vai aprender como nunca sobre jornalismo e literatura?, disse-me, com sua doçura habitual. É meu livro de cabeceira, o que sempre renova as minhas ilusões.Irmão Mainar não era de grandes expansões. Seu carinho pingava tranqüilo, vazando de uma timidez que nunca amainou, embora o homem não temesse os seus públicos e dominasse as barulhentas turmas da Faculdade de Comunicação sem qualquer esforço. Uma das paixões que tive nesse tempo nunca me deu a mínima.
Passados mais de 20 anos, num encontro nas alamedas floridas da PUC, irmão Mainar me disse: ?Olhe, encontrei uma senhora que perguntou por você?. Explicou-me de quem se tratava. Com um sorriso travesso e uma boa dose de irreverência nostálgica, perguntei-lhe: ?Irmão, ela continua linda??. Como se eu o tivesse questionado sobre a regra da crase, respondeu: ?De fato, é uma senhora muito bem-apessoada?. Mas sorriu. Rimos juntos. A tarde caía. Do seu jeito, foi um jornalista de bastidores. Adorava ouvir rádio. Colaborava com os jornais. Citava Carlos Lacerda de cor. Não se desligava das novidades e polêmicas da cultura. Divertia-se com os fogos de artifício das discussões intelectuais. Se tinha preferências ideológicas, não sei. Fui vê-lo no hospital: falou-me de um livro que pretendia escrever. O texto dos outros era a sua casa. A literatura brasileira, o seu hábitat. Valeu, irmão Mainar! Foi dez!
A morte do irmão marista Mainar Longhi me fez ouvir uma das mais belas canções da música brasileira, aquela que sempre ouço em momentos de despedida. Permito-me adaptá-la para o que estamos sentindo agora: ?Naquela universidade está faltando ele/ E a saudade dele está doendo em nós?. Morreu um educador. Morreu um verdadeiro irmão.
* Professor e Jornalista

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