O encontro com Ludwig

Por J. A Moraes de Oliveira Ele era um dos mais inteligentes alunos da 3a.série e o mais rápido nas respostas sobre história e …

Por J. A Moraes de Oliveira

Ele era um dos mais inteligentes alunos da 3a.série e o mais rápido nas respostas sobre história e geografia. Nós todos invejávamos a maneira como o "alemão" Diefenthaeler respondia às mais difíceis perguntas dos professores, que não se furtavam em demonstrar a inteligência de um dos melhores alunos do ginásio. Era até possível perceber um ligeiro sorriso de triunfo no redondo rosto rosado do Irmão Gilberto, após as respostas precisas do Diefenthaeler, como que demonstrando aos demais, a superioridade do seu aluno predileto.


Um dia, no recreio, me aproximei de Diefenthaeler e perguntei como ele era capaz de guardar na memória tantos nomes e datas. O "alemão" empurrou os óculos para cima da testa e disse que seu passatempo era decorar livros de geografia e história. Seu pai havia sido violinista em uma orquestra na Alemanha e costumava ensinar história e geografia aos filhos ao som das sinfonias de Beethoven. Sentindo meu interesse, Diefenthaeler desatou a falar em música e confessou que estava estudando para igualar a façanha de seu pai: identificar uma composição de Beethoven apenas por alguns acordes.


Depois de ouvir Diefenthaeler por alguns minutos - acho que o fazia com a boca meio aberta - e antes que a sineta chamasse para a aula de Química, me arrisquei a perguntar se poderia ir à sua casa ouvir alguns discos daquele compositor que tanto o inspirava.


Para minha surpresa, a resposta foi: "Claro, passa lá em casa no sábado de manhã". A sineta bateu naquele momento e atravessamos o pátio do Rosário, correndo para não perder a chamada. No caminho para casa, tentei imaginar uma desculpa para ir no sábado à casa de Diefenthaeler. A mãe não iria aceitar que eu deixasse de arrumar o quarto para ouvir música na casa de um colega de família rica, que morava para os lados da 24 de outubro.


Meu primeiro encontro com Beethoven foi favorecido pela sorte - no sábado, o pai iria até o centro da cidade para comprar raviólis no Mercado Público e torta de nozes na Confeitaria Schramm. Pedi para ir junto, pensando em convencer o pai a levar-me até a casa dos Diefenthaeler. Como o pai gostava de ópera, talvez tivesse sorte.


No trajeto de bonde até a Praça Quinze, as mãos suando frio, tentei várias vezes fazer o pedido, enquanto o pai me mostrava os altos prédios do centro e as lojas que passavam pelas janelas do bonde: "Ali é a Casa Carvalho, onde comprei teu uniforme? aqui, o Bar Liliputt, onde meus amigos do remo se reúnem às quartas-feiras? e lá, o porto, onde vocês embarcaram para a fazenda dos teus avós. E, mais adiante, além de Pelotas e Rio Grande, fica o mar?". E deixou escapar um suspiro fundo e um sorriso calmo, como quem saboreia doces lembranças da juventude.


Depois de comprar raviólis e a torta de nozes, fomos até a Rua da Praia, provar as empadinhas de camarão na Confeitaria Pelotense. Perdido entre os adultos que falavam alto enquanto devoravam as empadinhas no balcão, resolvi que aquela era a hora de arriscar meu pedido. A voz soou fraca e imperceptível - o pai se abaixou, ouviu o pedido, pensou um pouco e sorriu: "Eu te levo lá - mas não podes te atrasar para o almoço, pois sabes que a mãe fica aflita com tuas demoras".


Com o coração pulando no peito, seguimos pela rua do Rosário até a parada de bondes, eu saboreando a descoberta do lado suave e cúmplice do pai, quase sempre tão severo e exigente. Nunca os trilhos de bonde na subida da Independência me pareceram tão longos. Ao passarmos pelo Colégio Rosário, antecipei a segunda-feira, quando poderia compartilhar com os colegas os segredos que estava  prestes a desvendar.


Quando chegamos, Diefenthaeler nos esperava no jardim e convidou-nos a entrar. Meu pai recusou, mostrando os pacotes e, despedindo-se, mais uma vez lembrou-me o horário do almoço.


Na sala de jantar, a moderna rádio-vitrola RCA Victor e uma grande pilha de discos esperavam por mim. Me acomodei em uma poltrona e o "alemão" Diefenthaeler escovou cuidadosamente o primeiro disco e o colocou na  vitrola. Eu nunca ouvira sons tão hipnóticos e envolventes. Era a "Sonata Kreutzer", escolhida para me iniciar nos mistérios de Beethoven. Eu não sabia que a música tivesse um poder tão mágico como aquele que tomava conta da sala e de meus ouvidos. 


Outros discos se seguiram, acompanhados pelo sorriso de meu amigo, feliz diante de meu encantamento pela música que ele tanto amava. E seguiram-se outras sonatas para piano, depois as sonatas para violino. Mas pouco tempo depois, o encanto se desfez, quando o relógio cuco tocou o meio-dia. Corri para a porta, lembrando que minha mãe me esperava para o almoço.


Outras vezes voltei àquela casa para continuar minha iniciação musical, descobrindo os preciosos tesouros aos quais eu era apresentado nas manhãs de sábado. Em uma daquelas manhãs, o pai de Diefenthaeler veio nos fazer companhia, anunciando: "Hoje é o dia da maior das sinfonias" e, reverentemente, colocou na vitrola a Nona Sinfonia. Quando soaram os acordes da "Ode à Alegria", eu estava irremediavelmente atrasado para o almoço de minha mãe.


Se passariam muitos anos antes que eu pudesse entrar em uma loja de discos da Rua da Praia e comprar meu primeiro "long-playing" com uma sinfonia de Ludwig van Beethoven. Mas nunca tive hora e vez de agradecer ao Diefenthaeler as inesquecíveis manhãs de sábado, que me apresentaram à grande Música, da qual nunca mais me separaria.


Danke Schön, "alemão".

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