O espírito de Carlos Nobre

Por Emanuel Gomes de Mattos * Há 30 anos tenho pelo Paulo Sant"Ana uma amizade cativa. Ela surgiu nos primórdios de 1974, quando convivemos …

Por Emanuel Gomes de Mattos *
Há 30 anos tenho pelo Paulo Sant"Ana uma amizade cativa. Ela surgiu nos primórdios de 1974, quando convivemos no espaço ruidoso, situado em um canto escondido da antiga redação da Zero Hora. Por ali circulavam alguns dos mais iluminados jornalistas da época. Entre eles, destacava-se o Sant"Ana, cujo talento já pedia passagem.
Quem não o conhece pode até imaginá-lo individualista exacerbado. Engano. No dia-a-dia ele demonstra solidariedade e espírito de equipe. Ilustro com um episódio ocorrido no final dos anos 70, que pouca gente conhece. Estávamos reunidos, sob o comando de José Antônio Ribeiro, para escolher o nome da seção de notas que seria criada na editoria de Esportes. Ninguém havia sugerido algo melhor do que surrados clichês.
Então Sant"Ana chegou na roda, inteirou-se do problema e, incontinenti, cantou a estrofe do samba de João Nogueira, recém lançado no Rio de Janeiro: "Eu não vou entrar em bola dividida". Na mesma hora o Gago, apelido de José Antônio, cujo talento gráfico e musical era inexcedível, sorriu seus olhos azuis e batizou a seção como "Bola Dividida", título que perdura até hoje.
Quando o jornalismo perdeu Carlos Nobre, no final de 1985, parecia improvável substituir à altura aquele gênio que nos encantava com tiradas humorísticas inigualáveis na penúltima página de ZH. Pois Sant"Ana foi escolhido para ocupar este espaço. Quase 20 anos depois, a repercussão de suas pensatas atesta o acerto. São estilos incomparáveis de forma e conteúdo, mas o resultado é igual: virou leitura obrigatória.
Tornei pública minha admiração por suas qualidades ao escrever no Coletiva.net, em setembro de 2003, artigo intitulado "O Nobel para Sant"Ana". Na ocasião, afirmei que se Moacyr Scliar tem lugar na Academia Brasileira de Letras, Sant"Ana deveria concorrer ao Nobel de Literatura. Aos que pretendem crucificar-me por heresia, recomendo a leitura do arrazoado. Basta clicar no título acima referido.
Coleciono seus melhores textos, mas também guardo passagens em que o gato entrou na tuba. Isso não ocorre só quando o assunto é futebol. Torna-se, porém, notório em seus prognósticos eleitorais, que já levei a sério até aprender que nestas ocasiões ele incorpora Carlos Nobre. Agora que estou imunizado, adoto o riso como panacéia à pândega. Para ilustrar, selecionei quatro exemplos em que a vaca atolou no brejo por conta de suas previsões na campanha de 2002.
1) Em 20 de fevereiro, na coluna "Eleição não é em outubro", quando o PT não havia definido quem disputaria o governo, escreveu: "O candidato que perde certo a prévia venceria as eleições. E o candidato que ganha certo as prévias perderia as eleições". Ou seja, para ele se o governador Olívio ganhasse na convenção, perderia a eleição; se Tarso fosse escolhido, o PT venceria. E no último tópico esnobou: "?esta coluna tinha afinal um só objetivo: o de advertir aos ingênuos e incautos que o próximo governador não será escolhido nas eleições de 6 de outubro. O próximo governador será escolhido ainda em fevereiro, mais tardar em meados de março, no consenso fratricida ou na prévia amarga e indesejada do PT".
2) No dia 14 de março, em "O galo da oposição", insistiu nessa tese ao finalizá-la assim: "O candidato mais apto da oposição para chegar ao Piratini é Tarso. Se ele não vencer a prévia, qualquer candidato da oposição deverá ter chance contra Olívio no segundo turno". E previu: "Mas se Tarso vencer a prévia, é tão barbada que é até possível não haver segundo turno".
3) Em 19 de março, sob o título "Não há candidato!" rasgou a fantasia de vidente ao afirmar: "Antônio Britto, definitivamente, não será candidato". E diagnosticou: "É que não há candidato para enfrentar Tarso Genro, A campanha e a eleição de outubro pode virar apenas uma formalidade".
4) Mais adiante, em 8 de julho, frente à pesquisa do Ibope que apontava Britto com 35% contra 32% de Tarso, na coluna "Pega fogo a eleição!" analisou: "O mais intrigante é que, projetando para o segundo turno, a pesquisa viu aumentar a diferença de Britto sobre Tarso, desconhecendo até que o PDT não venha novamente na segunda volta a apoiar o ex-governador e que o PMDB venha a rachar entre os dois finalistas". E foi contundente: "A pesquisa comprova irretorquivelmente que entre nós os nomes estão acima dos partidos".
Hoje, como se sabe, tais previsões saíram ao revés: Tarso Genro foi escolhido candidato pelo PT, mas acabou derrotado em ambos os turnos; Antônio Britto também concorreu novamente; foi necessária a realização do segundo turno e Germano Rigotto eleito governador pela legenda do PMDB, partido com fortíssima estrutura estadual.
Estas considerações são necessárias porque bastou realizar-se o primeiro encontro dos sete principais candidatos a prefeito de Porto Alegre e Sant"Ana prontamente sentenciou em sua coluna, sob o título "Debate foi refresco para Pont", dia 2 de julho: "O Raul Pont, que pensei fosse fustigado por críticas e ataques dos seus adversários, foi tratado a pão-de-ló e canapés pelos oposicionistas". E vaticinou: "Nunca foi tão fácil para um partido alcançar o quinto mandato consecutivo numa cidade".
Permito-me, respeitosamente, discordar. Acompanhei o debate ciente da pesquisa do Ibope, efetuada entre 25 a 29 de abril, em que foram ouvidos 406 moradores de 94 bairros e vilas da Capital. Na resposta à questão "Características que as pessoas levam em conta na hora de votar", a esmagadora maioria de 66% apontou "Ser honesto". E em "Características que contribuem para NÃO votar no candidato", 63% responderam "Não ser honesto". Se a pesquisa está correta, quem for pego na mentira dificilmente sentará na cadeira de prefeito dia 1º de janeiro de 2005.
Pois na sétima intervenção do terceiro bloco do debate, o candidato Onyx Lorenzoni inquiriu a Raul Pont se a passagem de ônibus integrada faz parte de seu programa de governo. O candidato petista informou que ela será implantada ainda na atual administração do PT. Na réplica da pergunta, Onyx revelou que, na campanha de 1996, Pont havia prometido, caso eleito, implantar a passagem integrada. E citou como prova documental a página 8 de Zero Hora de 23 de junho daquele ano.
É fato que Pont ficou quatro anos à frente da Prefeitura, mas a passagem integrada não foi implantada. Na tréplica da questão, argumentou que a implantação da passagem integrada de ônibus é difícil, complexa, e lembrou a necessidade de garantir o emprego dos cobradores. Tudo transmitido ao vivo pela RBS TV de Porto Alegre no dia 1º de julho.
Ora, quero ser mico de circo se esse trecho não se tornar bordão no programa eleitoral de Onyx, cuja coligação possui o latifúndio de 7 minutos e 39 segundos em cada bloco que estará no ar entre 17 de agosto e 30 de setembro. Eis aí um claro exemplo de que houve no debate mais do que uma competição de estética, estilística ou de estereótipos, como deu a entender a leitura dos jornais. Teve conteúdo, e muito, sim senhor. Basta revê-lo.
Diante deste episódio que considero relevante, das duas uma: ou Sant"Ana viu apenas segmentos do debate, ou então subestima a inteligência de quem o assistiu quando assegura não ter notado "qualquer razão para os eleitores derrubarem a hegemonia longeva do PT", conforme encerrou sua coluna no dia seguinte. Prefiro entender que, nesta sucinta avaliação, ele incorporou o espírito do grande humorista Carlos Nobre, a quem sucedeu com tanta competência.
No ótimo livro "Os dez mandamentos da ética", o doutor em direito e em comunicação e semiótica, Gabriel Chalita, ensina: "Precisamos dos amigos porque eles nos ajudam a evoluir, a tomar as melhores decisões, a fazer as escolhas certas e a corrigir nossos erros. Ninguém é perfeito, e ao mesmo tempo todos mudam com a passagem do tempo. Aperfeiçoar as próprias habilidades, cultivar o espírito e engrandecer o coração são processos que devem acompanhar todos os que almejam uma existência digna, harmonizada com a ética".
O citado trecho consta no capítulo "Oitavo mandamento: ser amigo", cuja seqüência reproduzo: "A convivência dos amigos é um fator crucial para isto acontecer, na medida em que eles são como um espelho muito especial para o indivíduo. Por meio de sua visão a nosso respeito, dos efeitos de nossas ações sobre suas vidas, de seu apoio ou reprovação a nossas idéias e de sua companhia nos momentos importantes, somos capazes de conhecer muito do que somos e do que nos motiva".
Espero que Paulo Sant"Ana assimile esse artigo pelo prisma do sentido da amizade. Do contrário, nenhuma linha aqui escrita terá valido a pena.
Tive o cuidado de reproduzir trechos publicados na última campanha não apenas para refrescar-lhe a memória, mas porque o considero um formador de opinião com responsabilidade social. Como tribuno de Zero Hora, veículo em que manifesta diariamente sua opinião, ele pode influenciar até mesmo resultados eleitorais, no qual não se decidem campeonatos esportivos, e, sim, o destino de seres humanos.
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista

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