O jornalismo a ser reinventado

Por Moisés Mendes, para Coletiva.net

Meu maior carteiraço como jornalista é poder dizer que comecei, nos anos 70, como repórter e depois fui editor-chefe da mítica Gazeta de Alegrete. Eu trabalhei no jornal que um grupo de fazendeiros havia criado para defender a abolição. O jornal contribuiu para que o fim da escravatura no Rio Grande do Sul ocorresse quatro anos antes da Lei Áurea.

A Gazeta ainda existe, mas as missões que o jornalismo assumia nos séculos 19 e 20 foram desaparecendo com a fragilização da imprensa e sua opção pelo reacionarismo.

A imprensa que brigou pelo abolicionismo e explicitou posições progressistas históricas não existe mais. O último gesto grandioso da imprensa não foi a adesão à campanha das Diretas ou ao movimento dos caras-pintadas. O último grande movimento foi a briga que durou uma década e meia pela redemocratização pós-64.

A grande imprensa abrigou os grandes jornalistas brasileiros. Não haveria quase nada da memória da cobertura militante do ambientalismo sem uma figura como Lúcio Flavio Pinto, o repórter que nos alertou para as ameaças à Amazônia. E ele foi jornalista do conservador Estadão.

Também foram os jornais conservadores que reagiram com bravura à censura nos governos militares. Muitos entendem hoje que era jogo de cena. Não era. Os jornais defendiam o que faziam. E a resistência era muito mais das redações do que dos donos das empresas.

Os jornalistas formaram barricadas, em jornais que inicialmente apoiaram o golpe, e estruturaram a resistência a muito custo, geralmente avançando para muito além do que desejavam seus patrões. E o jornalismo nanico, dos alternativos, ajudou a empurrar a grande imprensa para a reabilitação antigolpe, a partir dos anos 70.

A diferença entre o que acontecia lá naquele tempo e o que acontece hoje não é culpa de nenhuma simplificação saudosista. O que houve foi o esgotamento da capacidade de reagir de todo o país e isso se manifesta também nas redações, que perdem vigor. O golpe abalou as redações nos últimos dois anos de uma forma inédita.

O jornalismo sucumbiu à sua desimportância. Até o humor gráfico ficou reacionário, o que seria impensável há até bem pouco. O humor que tenta fazer rir pela bajulação ao poder dos golpistas é um humor condenado a ser subserviente e imprestável.

Os donos das empresas fizeram (com raras exceções, como a Folha, talvez) a opção pelo público que as sustentam. A escolha foi pelo leitor ultraconservador, aquele que o golpe tirou do silêncio. É para eles que os jornais são feitos hoje.

O jornalismo brasileiro abandonou a pretensão de ajudar a civilizar o mundo, mesmo que sobrevivam nas redações as abordagens humanistas de grandes profissionais. Porque ainda há uma maioria de jornalistas progressistas.

Mas está sendo extinta, por falta de apoio, a vitalidade de bons repórteres de política, que poderiam ajudar a desvendar o golpe e suas consequências. Não há uma, uma só, grande reportagem sobre a Lava-Jato. Não há, 20 dias depois do crime, uma reportagem investigativa sobre o assassinato de Marielle Franco.

O jornalismo político comeu, nos últimos anos, pela mão de vazadores e de delatores. Está claro que não há, nos altos comandos dos jornais, nenhum esforço no sentido de restaurar a missão do jornalismo. Sobrou uma imprensa noticiosa, em sua maioria obediente ao golpe, que pulverizou os últimos resquícios de diversidade de opinião em suas páginas. O jornalismo das grandes redações está matando aos poucos as vozes de esquerda.

Mas sou otimista. O jornalismo que ressurgir da crise da imprensa como negócio e como missão pode ser melhor do que o feito pela minha geração. Acredito no jornalismo de garagem, que irá substituir (e já vem substituindo, mesmo que em ritmo mais lento do que o desejado) as redações.

A imprensa do século 21 continuará sendo um negócio de empresários que fazem jornais, mas bem menos. Será mesmo uma imprensa de jornais feitos e geridos por jornalistas.

É nisso que acredito, por intuição e por torcida. Não há como acabar com o jornalismo. Há como reinventá-lo com independência em relação aos grandes interesses econômicos e com a pluralidade que a imprensa desistiu de acolher e expressar. O jornalista depende da ambição de que tem uma missão no mundo.

Moisés Mendes é jornalista, mantém o www.blogdomoisesmendes.com.br e escreve quinzenalmente no jornal www.extraclasse.org.br.  

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