Se a canoa virar

Por Emanuel Gomes de Mattos* A leitura do noticiário neste período efervescente que antecede a campanha eleitoral de Porto Alegre permite que se vislumbre …

Por Emanuel Gomes de Mattos*
A leitura do noticiário neste período efervescente que antecede a campanha eleitoral de Porto Alegre permite que se vislumbre nuvens de urubus em céu de brigadeiro. Basta reproduzir algumas manchetes da imprensa local nos últimos meses para se chegar a esta conclusão. Todo o material a seguir foi publicado antes de 10 de junho, data oficial do início das convenções. Vale a pena conferir o vai-vem, em ordem cronológica:
PDT e PFL buscam aliança inédita na Capital (11/11); PMDB oficializa candidatura de Mendes a prefeito (17/11); Cinco siglas aliadas de Lula disputam com PT na Capital (23/11); Simon e Pompeo preparam aliança entre PMDB e PDT (7/1); PT e PTB negociam aliança para eleição de outubro (18/2); Por que Yeda e PSDB não se entendem (23/4); Yeda se lança candidata e prega unidade (26/4); Racha no PT adia definição de vice (30/4); PSDB define candidato em disputa acirrada (4/5); Candidatura de Zaneti não pacifica PSDB (5/5); PT define Maria do Rosário como vice (10/5); PT da Capital abre campanha com fogo amigo (17/5); PDT aposta em bloco com PMDB e PTB (11/5); PPS e PTB selam aliança em Porto Alegre (20/5); Comissão decidirá entre Mendes e Vieira (21/5); Mendes: "Não serei empecilho" (22/5); Fogaça (PPS) assume candidatura (26/5); Esfria aliança entre PDT e PMDB (26/5); PSDB apoiará Onyx à Prefeitura (27/5); Jair Soares (PP) concorrerá com vice do PV (5/6); Tucanos buscam conselhos de Serra sobre coligação (9/6).**
Frente a esta salada de frutas partidária, recomenda-se cautela e caldo de galinha ao abordar questões referentes ao pleito de outubro que, tudo indica, será empolgante. De todas, porém, uma chama a atenção pelo peso que poderá ter na definição do próximo prefeito de Porto Alegre, pois envolve a coligação que busca chegar à Prefeitura pela quinta vez consecutiva.
O candidato do PT, Raul Pont, mantém a expectativa de ter o PSB perfilado em seu palanque ainda no primeiro turno. Durante a convenção, tirou do arsenal um argumento de almanaque. Segundo o Correio do Povo, o ex-prefeito sustentou que "a dificuldade para os socialistas formarem coligações poderá deixá-los isolados. "Não há razão para disputarmos separados. Acho que o PSB deveria refletir sobre essa possibilidade", apelou" (11/6/2004, pág.2).
Fundador do PT e dono de rica biografia política, Pont possui credenciais que o habilitam a tentar recompor a Frente Popular. Em recente entrevista ao jornal O Pioneiro, ele declarou: "Estamos ainda discutindo com o PSB, que vem sinalizando com candidatura própria. Eles estão conosco no governo federal e municipal, então não tem muita lógica uma candidatura alternativa quando poderiam estar conosco. Mas é um direito que respeito" (3/5/2004).
Age bem. Por mais otimismo que haja quanto a nova vitória em outubro, não se deve perder de vista que o aliado Beto Albuquerque poderá, ao fim e ao cabo, se tornar tábua de salvação para os governistas permanecerem no poder. Fatos recentes autorizam a pensar que a troca de comando na Capital gaúcha em 2005 não é mero exercício de ficção.
Direto ao ponto: o PT corre o risco de sofrer um sobressalto se o eleitorado repetir nas urnas a rejeição que demonstrou ao artifício sagaz ocorrido na Prefeitura. Em 2000, depois de assegurar durante os debates que cumpriria integralmente o mandato, Tarso Genro ganhou no segundo turno com 491.775 votos contra 282.575 dados a Alceu Collares. Um ano, três meses e cinco dias depois de assumir, renunciou, a fim de concorrer ao governo estadual. E o vice, eleito por osmose, foi entronizado para cumprir os restantes dois anos, oito meses e 25 dias.
O castigo veio a cavalo em 2002: no segundo turno da eleição ao governo, o ex-prefeito teve em Porto Alegre 421.454 votos, enquanto Germano Rigotto conquistou 418.127 eleitores no reduto do adversário. Ou seja, em dois anos a vantagem de Tarso na Capital despencou de confortáveis 209.200 para escassos 3.327 votos. Foram ocasiões distintas e rivais diferentes, mas ali ficou evidente o espírito de revanche.
Em seu excelente livro "Manual Completo de Campanha Eleitoral" (L&PM Editores), o professor de Ciência Política da Ufrgs, Francisco Ferraz, no capítulo 15, intitulado "Pequenos grandes erros de campanha"considera que "deixar uma questão politicamente muito sensível mal explicada é um erro que isoladamente tem o poder de inviabilizar qualquer candidatura, pois quem tem o poder de fazer este julgamento é o eleitor e somente ele" (págs.331 e 332).
Sábia observação. Na prática, a poucos dias de iniciar a campanha municipal, fixada para o período de 6 de julho a 30 de setembro, a pergunta que não quer calar é: qual o tamanho do prejuízo eleitoral que o PT terá pela renúncia de seu último prefeito? Ninguém de bom senso se atreverá a respondê-la previamente, até porque ela tem data e local marcados para ser tornada pública: dia 3 de outubro, nas urnas eletrônicas de Porto Alegre. E além desta dúvida, há também outras questões pendentes.
Nicolau Maquiavel (1469/1527), em sua obra fundamental, O Príncipe, escreveu: "O êxito de uma república pode ser estrategicamente obtido através da sucessão dos governantes. Se intercalar os virtuosos com os fracos, o Estado poderá manter-se. Mas se, diferentemente, dois ruins sucederem-se, ou apenas um, mas que seja duradouro, a ruína do Estado será inevitável, já que, desse modo, o segundo governo não poderá utilizar-se dos bons frutos do governo anterior".
Quando escreveu este livro, o famoso pensador renascentista desconhecia que os porto-alegrenses irão às urnas em 2004 com o PT no comando simultâneo dos governos municipal e federal. Portanto, não tem jeito: embora seja aconselhável cambiar mazelas por propostas, é impossível descartar que desemprego, saúde, segurança, valor do salário mínimo e denúncias de corrupção estarão presentes, tanto nos debates quanto na propaganda eleitoral.
Então, por maior que seja a capacidade de convencimento, sempre haverá - como em qualquer eleição anterior - cobrança forte por parte de quem está na oposição. O próprio PT reconhece a eficácia dessa postura, como demonstrou a crítica desfechada pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, na recente conferência eleitoral do partido em Porto Alegre, testemunhada por José Dirceu, José Genoíno e caciques locais. "Não iremos nos furtar de fazer uma comparação da experiência desastrosa do governo Germano Rigotto com a administração Olívio Dutra" (ZH, 7/6/2004, pág.6).
Ao pisar no movediço terreno de cotejar atos de governos, é fato que os envolvidos saem chamuscados, enquanto as candidaturas à margem se beneficiam. Coloque no caldeirão a lembrança da surpreendente última eleição majoritária, em que Rigotto partiu de 2% das intenções de votos rumo ao Palácio Piratini, para que qualquer abóbora imagine possuir a fórmula mágica de virar carruagem.
É aí que entra Beto Albuquerque. Embora seja vice-líder de Lula, dificilmente sofrerá impacto maior nas críticas às gestões petistas. Deputado federal pelo PSB, ele ocupa espaço na política regional e em Brasília pela seriedade com que cumpre as funções designadas. Pode não ser credencial suficiente para vencer agora, mas se a maioria do eleitorado virar as costas ao PT, e ainda houver empatia pelas bandeiras que o partido carregava, a opção por seu nome não deve ser descartada.
Resumo da ópera: se não é bom para Raul Pont repartir votos com Beto Albuquerque, sem ele poderá ficar pior porque, na hipótese da canoa virar, é melhor que haja um barco amigo para socorrer os náufragos. Neste caso, perdem-se os anéis, mas ficam os dedos. Do contrário, ao insistir para que o único adversário identificado com o governo se retire da disputa, o PT corre o risco de estar disparando no próprio pé.
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista.
** Esse artigo estava apenas um dia no ar e já fui obrigado a pedir um acréscimo, sob pena de ficar desatualizado, diante da última bomba em Porto Alegre. Anote ai: PL se une ao PDT e surpreende petistas (15/6). Como se vê, é tanta adrenalina que o diretor de novelas da Globo ainda vai morrer de inveja da nossa eleição.

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