Dicionário do hinário

Por Fraga

O Hino Nacional tem trocentos anos: é do tempo em que o imaginário popular se empanturrava de metáforas, hipérboles, parábolas e outras figuraças de linguagem. O povaréu cantava o que lhe soava admirável, louvável, confortável. Do antanho para cá, a belezura musical resiste, mas sentido da letra não persiste.

Margens plácidas - Que placidez que me hablas hoje em dia? A crescente erosão dos rios, os criminosos poluentes industriais, a invasão desordenada das populações ribeirinhas e a pavorosa especulação imobiliária liquidaram de vez com as margens de outrora.

Povo heroico - Com a caravana das crises econômicas enfileiradas, com a insegurança e a violência ao redor de todos, as injustiças sociais que recaem, sobretudo, sobre negros e pobres, o desemprego que aumenta, as perdas salariais, só mesmo com heroísmo pra suportar a realidade tupiniquim.

Brado retumbante - Desde urros e berros nas madrugadas urbanas e gritos e ameaças nas periferias, a noites e dias ensurdecedores, ecoam sons assustadores, reverbera a desesperança. 

Sol da liberdade - O astro-rei que brilha e rebrilha a intervalos sobre a República sofre com temporadas nubladas, cúmulos e nimbus que parecem jamais sair do horizonte. Sem falar nos temíveis eclipses parciais ou totais. E no raiar dos novos tempos após as eleições, ninguém tá livre de uma época sombria.

Raios fúlgidos - Tudo que afetar o Sol da Liberdade vai influir no seu fulgir e fazer fenecer o seu fulgor. Nesses casos, os raios fúlgidos são geralmente substituídos por raios que nos partam e raios que os pariu.

Céu da pátria - É essa abóbada que nos recobre, mas de nada nos protege. Pode ser límpido, como qualquer ilusão em cor anil, ou plúmbeo, que é o aviso prévio pros brasileiros tirarem o cavalinho da chuva.

Penhor da igualdade - O PIB encolhido e a recessão recolhida á sua significância, levam as pessoas até as casas de penhores. Nelas, impera a tal igualdade: o mesmo socorro financeiro, as mesmas taxas de juros, os mesmos prazos de resgate. Joias e outros bens podem ser empenhados igualmente.

Braço forte - Num país com escassez de escolas técnicas e poucas oportunidades no ensino superior para todas as faixas sociais da população, salvação só para os forçudos. É a força bruta que alavanca trabalhos pesados na estiva, na indústria da construção, nas pedreiras, etc.

Teu seio - Embora a medicina tenha evoluído e a tecnologia avançado, o câncer de mama ainda vitimiza demais as brasileiras. As esperas intermináveis do SUS acabam por gerar um número elevado de mastectomias que poderiam ser evitadas.

Ó Liberdade - Cumprimento com um piscar de olhos que se faz disfarçadamente quando visualizamos um vislumbre dessa linda dama.

Nosso peito - Asma, enfisema, tuberculose, cardiopatias e outros males da caixa torácica atrapalham a cantoria do hino. A mão levada ao peito nas cerimônias civis e esportivas não é só o patriotismo. É também um aviso: tá na hora de mais um check up do peitoral ou peitoril, sei lá.

Própria morte - É a vez de se destacar a quantidade de erros médicos, cada vez mais recorrentes no meio hospital. E comentar a volumosa estatística das perdas de vidas humanas no trânsito, na guerra do tráfico, na violência social. Matança e mortandade são palavras que jamais sairão dos dicionários da língua portuguesa.

Pô, Fraga, quanto desumor com o hino! Argh, chega por hoje.

(Continua na próxima coluna)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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