Os cheiros, os tons e sons geniais

No sábado de folga, com matizes de um inverno constrangido, tinha que cruzar pelo centro da cidade e resolvi levar minha filha Gabriela para …

No sábado de folga, com matizes de um inverno constrangido, tinha que cruzar pelo centro da cidade e resolvi levar minha filha Gabriela para conhecer o Mercado Público. Anos atrás, ela esteve lá desfilando para a grife de camisetas da Univens, um projeto de economia solidária da Prefeitura, mas tinha menos do que sete anos e nem se lembra mais. A pequena notável reclamou de tudo. Da dificuldade em caminhar nas ruas, tomada de camelôs, do empurra-empurra de todos e de ouvir eu falar umas 20 vezes para ela cuidar a minúscula bolsinha em que levava o celular.


Por fim, não aguentou e me fez desistir de almoçar no Gambrinus ou no Naval porque achou tudo insuportável. "Que cheiro horrível de peixe", exclamou, bufando de indignação. Conformada, mudamos completamente de cenário e rumamos para o Moinhos Shopping, onde, depois de almoçar, um bom filme nos aguardava. Lá, não reclamou de nada. Olhou as vitrinas, achou os preços bem acessíveis (deve ser para o bolso dela no futuro), escolheu um prato sofisticado de comida e inalou, diversas vezes, o aroma do ambiente.


É, com todo o respeito, dependendo da idade e da experiência de vida, a burguesia fede mesmo, muito. Mais tarde, em casa, recordei de quantas vezes eu reclamei de cruzar o mercado para pegar o ônibus, porque achava seu cheiro horripilante. Tudo me causava nojo. As memórias me lembraram o tempo em que eu gostava de sentir cheiro de asseio, de coisa limpinha, perfume no ar, rostos bonitos, etiquetas e não roupas. E tudo isso me causava um prazer e uma certa tranqüilidade, como se a porta para o outro mundo estivesse lacrada.


Diziam que eu era louca por pensar assim. Não sou louca de dizer que não gosto do que é bom. Capaz, não assino Napoleão Bonaparte. Com o amadurecimento, aprendemos a dar valor a todos os sentidos. Os mais aguçados e também os podres sentidos fazem parte da nossa estúpida retórica. Não vou falar de todos. Selecionei alguns fatos da semana em que morrer e matar de fome foram tantas vezes gestos naturais, diria o Caetano.


Ao descrever meu passeio com Gabriela no Mercado Público, falei de um único sentido, o olfato. Mas, que carregou em todo o trajeto mais dois sentidos: a visão e o paladar. Se ela, enojada com o cenário, mais pela fase pré adolescente de que tudo aquilo era sem atrativo, pouco fashion, perdeu a vontade de comer ali e queria fugir, eu, ao contrário. O cheiro de peixe abriu minha vontade de degustar um bom peixe grelhado e, na falta dele, mais tarde, visualizei o prato no meu imaginário.


Na saída do cinema, encantada com a riqueza dos detalhes do filme, nem se importou de percorrer algumas quadras caminhando pelas calçadas da fama no bairro Moinhos de Vento. Desenvolvendo muito bem todos os seus sentidos. Como se os tons, os miltons e seus sons geniais nos salvassem das trevas e nada mais. Nesse caminho, o sentido da visão mostrou a sua real importância. E ela gritou, no seu íntimo, muitas vezes, como são lindas as coisas burguesas. São os homens exercendo seus podres poderes.


Habita ainda na minha filha um lado infantil que queria ver o "Criança Esperança" no sábado à noite. E não escondeu a tristeza com a realidade das crianças que nada têm, relatada em reportagens no programa. Oportunidade que eu esperava para falar, com alguma contextualização, da necessidade de rever valores, mesmo que ainda seja uma quase cidadã. Insisti em mostrar para ela os contrastes. Dentro de uma linguagem que não a afastasse definitivamente do mundo real, mas sem ficar uma pregação, relembrei todo o nosso passeio do dia e as imensas possibilidades que ainda nos cercam.


E contei de uma pauta que fiz no Instituto Santa Luzia, em que uma operadora de telefonia móvel, através de seu trabalho de voluntariado, doou CDs e livros em braille para o colégio, que adota uma educação inclusiva, com cerca de 50 alunos portadores de deficiência visual. Narrei a alegria de oito alunos cegos que cantaram, no final da solenidade, num gesto de agradecimento. Admirei muito a felicidade que eles demonstravam e me emocionei ao ouvir uma aluna lendo em braille uma frase do livro "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.


Depois, fiquei inundada com uma parte da música entoada pelos alunos, que dizia: "Amigo é o sol que orienta, é a estrada sem fronteiras, é a vida que se move, é o abraço que acolhe". E lembrei de uma passagem do livro que resume um pouco os nossos podres sentidos, em que Macabéa afirma: "Tudo de repente era muito e tão amplo que senti vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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