Quando palavrão era pecado

Ao ver passar o conversível vermelho com uma loura faiscante ao volante, os adolescentes ao meu lado não se contiveram e largaram meia dúzia …

Ao ver passar o conversível vermelho com uma loura faiscante ao volante, os adolescentes ao meu lado não se contiveram e largaram meia dúzia de palavrões. O sinal abriu e atravessamos a rua, os adolescentes, em roupas de grife, seguindo o conversível com os olhos e continuando a agressão verbal. Segui meu caminho e iniciei uma conversa com meus botões. Dizia-lhes como era difícil entender a facilidade com que jovens  de classe média apelam para a mais vulgar das linguagens, ao se expressar e se comunicar entre si.


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Não muito tempo atrás, o linguajar dos adolescentes era vigiado de perto pelos mais velhos. Nas revistas de histórias em quadrinhos, tentavam decifrar os misteriosos sinais nos balões de diálogos, quando o vilão praguejava ao ter seus planos maquiavélicos frustrados pelo herói. O balão acima de sua cabeça não continha palavras, apenas sinais como:


 " !#?©edg?abfh??*# ", 


seguidos de pequenos raios, cobras e lagartos. Eram insultos que não sabíamos repetir, pois não tínhamos idéia do que significavam. Até que Robin, o parceiro do Batman, veio em nosso auxílio, com a inocente exclamação, que passamos a adotar como se fosse um grosso palavrão. Era simplesmente:


 "Lagartos Saltitantes".


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Nas famílias da Porto Alegre dos bons tempos, o vocabulário funcionava como um código na seleção dos amigos e companheiros de seus filhos. Quando um dos meninos deixava escapar uma interjeição grosseira, ganhava no ato olhares de severidade e se ouvia a sentença:


" - Se fosse meu filho, esfregava-lhe a língua com pimenta malagueta".


Aquela possibilidade nos assustava o suficiente para que tomássemos todos os cuidados com o palavreado. Nos ensinavam que palavrões eram um hábito feio e mal-educado, próprio dos varzeanos, como eram designadas as pessoas que moravam na várzea, o território além da Protásio Alves, prá lá do antigo Campo de Polo.


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Mais tarde, no ginásio do Rosário, descobrimos que havia outras formas de praguejar. Colegas mais velhos, volta e meia, usavam expressões herdadas dos pais imigrantes, como "Porca Miséria" ou "Porca Madonna", que nos deixavam espantados, mas com uma ponta de inveja de quem era capaz de xingar em italiano. Até tentamos imitá-los, mas era difícil falar com o mesmo sotaque. Nossa inveja não prosperou, pois o Irmão Luiz Roberto, recém-chegado de Roma, acabou por expulsar os "bocas-sujas" da sala de aula por proferirem blasfêmias diante dos colegas.


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Na fazenda do Passo Grande, os tios e peões usavam rudes expressões campeiras, muitas delas em espanhol, trazidas das andanças pelo Uruguai e Argentina. Quando conseguia escapar do olhar vigilante da mãe, eu esticava as orelhas nas lides de doma e nas rodas de fogo, pescando aqui e ali palavras cujo sentido me escapava, mas agradáveis por seu sonido estrangeiro.


E antes que as férias chegassem ao fim, juntei um estoque de palavrões em espanhol para exibir aos colegas, na volta para casa. Mais uma vez, meus sonhos duraram pouco. Em uma bela manhã, meu tio Alvinho, que era o domador da família, ao tentar sujeitar um chucro, soltou um alto e sonoro palavrão correntino.


Nenhuma das crianças que estavam por perto - muito menos eu - entendeu o que ele quis dizer, mas o avô, que estava a um canto da mangueira, fechou o cenho e chamou o tio Alvinho de lado. E ali ficaram por um tempo, meu avô falando e o tio, ouvindo. E nós, crianças, morrendo de medo e de curiosidade.


No outro dia, um dos primos mais velhos contou da conversa dos dois. O avô, um homem doce como mel, mas duro como aço, quando era preciso, fora severo:


"- Alvinho, a valia de um homem não se mede por brabeza. Palavrões não resolvem os problemas da vida. Hay que ser educado na frente das mulheres e crianças e até mesmo quando solito. Mesmo nos entreveros da revolução, nunca ouvi da boca dos paisanos que pelearam comigo, uma blasfêmia, mesmo baleados na paleta ou com um buraco de lança  na barriga".


E batendo pesado a manopla no ombro do filho:


" - Quem fala palavrão é homem que não sabe o valor que tem".


Depois daquelas férias, foi cada vez mais difícil falar palavrões em frente dos meus pais. O que acabou virando um hábito arraigado e cada vez mais fora de moda.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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