De Poceiros e Caminhantes

Um dia desses, eu andava lá pelos lados do Cambará, procurando um tipo difícil de encontrar nos tempos de hoje – um poceiro à …

Um dia desses, eu andava lá pelos lados do Cambará, procurando um tipo difícil de encontrar nos tempos de hoje - um poceiro à moda antiga, daqueles que ainda sabem como furar poço, manuseando apenas uma prosaica forquilha de madeira.
Depois de rodar por muito tempo pela maltratada estrada de terra, chego no Passo do Cocho, por onde, me haviam garantido, o poceiro passava todos os dias, antes do por-do-sol. A descrição não poderia ser mais detalhada - um homem aloirado, com a barba por fazer e usando um boné azul de uma oficina mecânica. Seu nome é Aroldo Barth e, pelo que dizem, tem gravado na cabeça o mapa de todos os mananciais e aquíferos dos Campos de Cima da Serra.
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Quando vi ao longe um vulto atravessando os campos, pensei que era o tal poceiro. Mas, ao firmar bem a vista, percebi que, em vez de um boné, o vulto usava um grande chapéu de colono. Andava a passos firmes, se apoiando em um longo cajado. Havia alguma coisa singular naquele homem que eu já vira antes.
Seria o estranho caminhante que o velho Fanor me apontou, um certo dia, nas trilhas do vale do Paranhana? Eu já me esquecera daquela estória, tanto que a deixara de lado, como fazemos com as coisas mal resolvidas que encontramos aqui e ali.
Passados alguns minutos, o homem com chapéu de colono desviou para o norte, como se seguisse uma trilha conhecida apenas por ele. E logo sumiu de vista, atrás dos pinheiros, em direção aos cânions. Fiquei sem saber o que fazer. Entrar no campo e seguir a trilha até alcançar o caminhante misterioso?
Mas, e o homem que fura poço?
Não se passa um minuto e vejo alguém subindo pela estradinha, em minha direção. Se aproxima, e como se soubesse que eu o esperava, tira o boné azul e se apresenta:
" - Sou Aroldo, o poceiro".
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A conversa demora mais do que imaginava. Acomodados à sombra de uma quaresmeira, o poceiro me conta que passou a vida furando poços. Indago se conhece GPS por satélite e sonares de profundidade, usados para localizar água no subsolo. Ele me olha com olhos de azul-pálido, sacode a cabeça e diz que não acredita nas "maquinetas" modernas. Enfia a mão no bolso da jaqueta surrada e mostra uma forquilha de marmelo.
" - Com isto posso achar mananciais até 200 metros debaixo do chão. Se não jorrar água em 100 metros, furo outro poço, de graça".
Aroldo diz que aprendeu o ofício com o pai, que, por sua vez, aprendera com o avô. Chegaram em uma leva de imigrantes alemães que aportou no Sul em 1914. O avô já era poceiro na Vestfália, nos tempos do Kaiser, e se orgulhava de nunca ter furado um poço seco.
O homem parece que conhece mesmo os campos serranos. Antes de ver o local onde pretendo furar um poço, diz que lá existem grandes rochas no subsolo, o que é garantia de boa água.
"- Melhor do que estas águas de garrafinha", diz ele.
Um bando de caturritas voa baixo entre os pinheiros, fazendo uma grande algaravia.
"- É tempo de pinhões", avisa.
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Se ele sabe de caturritas, deve saber de trilhas. Pergunto-lhe se já viu andarilhos passarem por ali. Sem falar nada, faz sinal para seguí-lo. Entramos no campo até uns duzentos metros da estrada. Ele aponta para uma trilha oculta pelo capim caneleiro. Depois, vai até a cerca próxima e mostra um vão de passagem entre dois moirões.
Há espaço suficiente para passar um homem a pé, mas é estreito para a passagem de um cavalo. E, para minha incredulidade, diz que os cerqueiros tem por hábito deixar vãos assim, nos lugares por onde passam as trilhas. Examino os moirões, onde a madeira polida mostra que muita gente passou por ali.
Quando me despeço do poceiro, o sol já cai atrás dos pinheiros. Em algum lugar, mais ao norte, onde começam os grandes cânions, o caminhante deve estar procurando um pouso para passar a noite.
 

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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