Apontamentos para uma terapia do riso

Rir é bom, dizem os cientistas, cheios de dados muito sérios. Não é nenhuma novidade, claro. Pegue-se O ganso de ouro, por exemplo, um …

Rir é bom, dizem os cientistas, cheios de dados muito sérios. Não é nenhuma novidade, claro. Pegue-se O ganso de ouro, por exemplo, um conto de fadas de origem remota como todo bom conto de fadas, recolhido pelos Irmãos Grimm, entre outros. Tem uma princesa que não ri nunca. O rei, preocupado, promete dá-la em casamento ao primeiro que a fizer rir, quer dizer, como notou Bruno Bettelheim, a quem a tornar humana. O ganso de ouro tem a vantagem de ser uma defesa engraçada do riso, coisa que não acontece com O nome da rosa, do Umberto Eco, que é coisa de intelectual, para se dizer o mínimo.
Mas o menosprezo pelo riso também é bem antiguinho. Não é apenas aquela pequena difamação do ditado popular, "muito riso, pouco siso". O menosprezo pelo riso é comum mesmo entre humoristas. Woody Allen disse que o humorista está entre as crianças e ele quer falar com os adultos. Talvez seja lentidão minha, mas faz mais de dez anos que não compreendo o sentido disso. Vai ver, Allen considera humorista apenas um Renato Aragão, nunca um Mario Quintana, um Julio Cortázar, um Jorge Luis Borges. Certo, não pensamos neles como humoristas, agora se cortarmos o humor das suas obras, sobra bem menos da metade.
Millôr Fernandes cansou de repetir que o humor não é para fazer rir, mas pensar. Isso não equivale ao que Allen disse? Mas se não faz rir, não é humor. Se ainda faz pensar, ótimo, foi lucro. Claro que o Millôr sabe disso, mas deve ter se enchido de ser considerado apenas um humorista.
Nesse mesmo passo já vinha o velho Aristóteles, que achava que a tragédia é superior à comédia porque a comédia não tem a dor. Podemos inverter a frase: a tragédia é inferior porque não tem o riso. O fato é que estamos, como sempre - por comodidade, por incompetência -, dividindo a vida em fatias higiênicas.
Antes, Sócrates disse que é natural a um mesmo homem saber fazer comédia e tragédia. Mais: que aquele que é, com arte, um poeta trágico, será um poeta cômico. Infelizmente os detalhes da argumentação se perderam, porque a conversa foi num fim de festa e quem contou para Platão foi Aristodemo que, de porre, só tinha acordado na hora da conclusão. Os que discutiam, Aristófanes e Agatão, também tinham ido firme no vinho e cochilavam, concordando mais por cansaço.
Não consta que Sócrates estivesse sóbrio, mas é possível, dado o bom senso da observação dele. Qualquer poeta sabe, ou deveria saber, que o trágico e o cômico andam juntos, muitas vezes se confundem e trocam de posição. Não existem mais tragicomédias por absoluta falta de talento e porque os relações-públicas da solenidade travestida de seriedade são muito ativos. Como disse Cortázar, "se o humor fica reduzido às suas próprias forças, sozinho na gaiola, nos dá Three men on a boat, mas jamais Sancho na ilha" ( La vuelta al día en ochenta mundos). Ou o concerto da Berthe Trépat, em Rayuela, acrescentemos nós.
O Brasil, vá se saber por que, tem uma literatura mais séria do que criança cagada, como dizemos nós, os gaúchos, com nossa proverbial delicadeza. Mesmo o famoso humor do Machado de Assis está mais para o veneno do que para a leveza - não queria a graça, queria ferir. Casos como Mario Quintana e Rubem Braga são exceções. Mas agora, com cientistas afirmando que o riso é antidepressivo, que move 150 músculos contra os 54 do choro, e que algumas gargalhadas equivalem a um orgasmo, as coisas fatalmente vão mudar, começando talvez com a venda de livros nas farmácias e uma coluna de humor nos cadernos científicos dos jornais.
Sinto a efervescência desses novos tempos em mim mesmo. Me desculpem se falo na primeira pessoa. Não se trata de exibicionismo descarado, mas da consciência de ter sacado uma jogada histórica. Pensei em abrir um consultório, que tal? Na porta boto a placa: Ernani Ssó - Humorista. É capaz de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas não acharem graça na concorrência, ou me mandarem os casos mais desesperados, nunca se sabe. Meu trabalho deverá ter alguns pontos de contato com o deles, como o preço, por exemplo.
Meus pacientes vão assistir comédias, vão ouvir trechos selecionados do Luis Fernando Verissimo, Ivan Lessa, Rabelais, Cervantes e outros, ou, dependendo da ignorância do sujeito, piada de papagaio, sogra, fanho. Paralelo a esse tratamento cultural, levarei outro: os pacientes rirem dos conhecidos, amigos, parentes e desafetos. Pelo que sei, poucas depressões sobrevivem a uma sessão de fofocas venenosas. Para completar, comentários sobre nossos governantes, atingindo assim angústias especificamente brasileiras.
Tudo isso, claro, é apenas ensaio. Nessas alturas, o paciente já andará bem melhor, mas é chegada a hora de saber que rir dos outros, embora ótimo, talvez não seja muito correto. Para que o riso não tenha nenhuma sombra que atrapalhe sua limpidez, acho que o paciente tem de adquirir o direito de rir dos outros, e isso é danado de difícil - tem de aprender a rir de si mesmo. Só aí ele vai descobrir a verdadeira graça da vida.
Não vou dizer que não dói. Tratar o ego da gente como se fosse o de um político exige mais peito do que a De Millus poderia imaginar, mas é necessário porque só assim se descobrirá o que qualquer criança esperta logo aprende, isto é, que não é o centro do universo. Pode estar a um ou dois centímetros mais para a esquerda ou para a direita, mas não no centro. Esta percepção reordena o caos, bota em foco alguns cantos escuros do mundo e mostra a diferença, fatal, entre um bebê de colo e um adulto, essa ave rara.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

Comentários