Muylaert, Casé e os machos bêbados

Dá pra fazer filme sem um orçamento milionário, sem efeitos especiais, sem uma fotografia estilosa, sem botar banca de filme cabeça? Claro, mas são …

Dá pra fazer filme sem um orçamento milionário, sem efeitos especiais, sem uma fotografia estilosa, sem botar banca de filme cabeça? Claro, mas são necessárias algumas coisinhas, como ter o que contar, ter talento, ter sensibilidade. Que horas ela volta?, da Anna Muylaert,  é a prova de que o bife é mais importante que a cebola que o cobre.
Muylaert conta uma história simples, cotidiana, com as armas da simplicidade e do bom humor - o fantasma do Glauber deve estar espumando entre pragas e gemidos. Não estou brincando, não. Como quem não quer nada, Muylaert vai muito mais longe que os cinemanovistas da vida, que ficavam tão preocupados com a ideia na cabeça que esqueciam a câmera na mão e depois tinham de preencher o vazio com longos discursos nas entrevistas.
Com um tema perigoso prontinho pra virar folhetim açucarado - criação de filhos, relação de empregados e patrões -, Muylaert olha tudo com humor, ironia e muito afeto. Seu olhar também é elíptico, mais insinua do que diz. O final, talvez o ponto mais perigoso nesse caso, é emocionante, mas não sai um tico do esquadro, é contido ao extremo, como todo o filme. Eu, que sou durão, entreguei os pontos. Esse negócio de filhos mexe comigo.
Os diálogos são cotidianos, comuns, naturais. Poderiam ser meio insossos, como me pareceram um pouco os de O som ao redor, mas têm graça e brilho. Regina Casé os torna dela, particulares, únicos. Isso, meus senhores, é um feito.
Regina Casé, por sinal, merece o Prêmio Wordld Cinema Dramatic Special Jury que dividiu com Camila Márdila no Festival de Sundance. Um crítico italiano a comparou a Anna Magnani. Sabe que acho que tem razão? Casé, como Magnani, é do tipo força da natureza, embora Casé pareça mais simpática, mais doce no trato. Ou a gente acostumou a associar a Magnani a papéis trágicos. Saí do cinema com pena - uma atriz dessas desperdiçando seu talento em programas de tevê. Bom, pelo menos não foi triturado pela tevê, como tantos outros.
Deve-se notar ainda que Muylaert, mesmo deixando Casé improvisar, manteve-a longe da caricatura. Ponto pras duas pelo exorcismo da frouxidão televisiva.

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 Em Recife, num bate-papo sobre o filme, os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira entraram com suas garrafas de cerveja e aos berros não deixaram Anna Muylaert falar sossegada. Muita gente, inclusive a diretora, atribuiu isso ao machismo. Pode ser, afinal tem homem que leva a sério a frasezinha do Millôr: o melhor movimento da mulher é o dos quadris. Aí vem essa fulana e mostra que tem talento, que é inteligente e, pior ainda, faz sucesso sem precisar mover os quadris. Mas, convenhamos, era melhor Cláudio Assis e Lírio Ferreira terem ficado na deles. Se mostrarem assim, dodóis, pra todo o Brasil, não foi muito másculo.

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 Em tempo: não tenho nada contra o movimento dos quadris, pelo contrário. Mas, pero, but. Se antes e depois do movimento esse não houvesse um indivíduo, imagina como o mundo seria chato? Antes e depois? Não, durante também. Ou você é do tipo cobra ou peru? Relembre as palavras de Robert Wright em O animal moral: "Há registros de que as cobras machos perdem algum tempo com fêmeas mortas antes de prosseguir na busca de uma parceira viva. E os perus cortejarão com avidez uma réplica empalhada de uma perua".
Benza Deus.

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Há quem prefira perder o amigo e não perder a piada. Millôr preferiu não perder a piada à custa de uma simplificação grosseira. Isso seria fácil de entender no caso desses humoristas televisivos, tipo Rafinha. Mas no caso do homem que se pretendia um pensador, o cara mais inteligente do Brasil e arredores?

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Cláudio Assis e Lírio Ferreira tomaram umas biritas antes de irem esculhambar a fala da Muylaert. Talvez, sem coragem engarrafada, nada disso teria acontecido. Não se trata de um atenuante, pelo contrário.

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Entre o fascínio e o nojo, li os comentários dos leitores (palavra forte pra definir esses caras) nas malditas caixas. A maioria atacou a diretora com argumentos do tipo o feminismo acaba na hora em que o pneu fura ou que é preciso abrir o vidro de maionese. Bom, gostaria de ver um homem que acredita que toda a pendenga feminista é a igualdade de força física aguentar três rounds com a Cris Cyborg. Pode ser que depois ele tivesse uma ideia diferente sobre raciocinar com lógica.
Muitos leitores disseram que não vão ver o filme porque deve ser uma porcaria, já que a diretora achou machista a atitude de Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Rápido, tirem as crianças da sala, pobres inocentes de Deus.
Outros se negaram por causa da Regina Casé: como aquela gorda feia pode ter pretensão a ter talento? Quando alguém argumentava que o filme e a Casé levaram prêmios no exterior, que está passando num monte de países com boas críticas, o que houve? Silêncio. E a reiteração: pra ver chororô de nordestino explorado por paulista nem morto. Mais incrível, um sujeito, com a fúria habitual, cobrou a diretora: por que não faz filmes com negros?
Olha, se alguém se mostra vaidoso da sua inteligência, do seu talento, posso compreender facilmente, que ninguém é de ferro. Mas fazer o que quando alguém se mostra vaidoso da própria estupidez? - uma vaidade estrondosa, com uma total falta de desconfiômetro dos limites de seus dois neurônios. Ou essa pose de orangotango batendo no peito com urros é pra distrair o sujeito do seu temor - o que rondará meus dois neurônios? -, como o assobio de quem passa pelo beco escuro?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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