Os livros de 2015

Não, meu caro, não se trata de lista dos melhores. Meu fascínio pela empulhação não chega a tanto. Gostaria apenas de falar rapidamente de …

Não, meu caro, não se trata de lista dos melhores. Meu fascínio pela empulhação não chega a tanto. Gostaria apenas de falar rapidamente de alguns livros que li ou reli ou não consegui ler neste malfadado ano.
Não sei quantos livros foram ao todo. Há muito deixei essa contabilidade de lado. Quando era adolescente, cada novo livro lido era um livro a menos. Agora, cada novo livro lido virou mais um livro. Talvez isso soe meio melancólico. Paciência.
Hoje faz um calor bárbaro. Melancolia em dia quente assim é o pior cenário. Faz de conta então que ligamos o ar-condicionado.
Os demônios, de Fiódor Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra, editora 34. Eu tinha lido aos vinte e poucos anos uma outra tradução chamada Os possessos (possivelmente a retradução do francês, de 1943, de Augusto Rodrigues, pra editora Panamericana) e guardava uma lembrança deslumbrante. Daí que me decepcionei. Claro que se trata de um grande romance - só os personagens Stiepan Trofímovitch e Varvara Pietrovna Stavróguina valem o preço, sem falar da relação escusa entre eles. O que me deixou resmungando foi justamente o que se vende como o cerne do livro: os terroristas, suas motivações e suas emoções tormentosas. Fora Stiepánovitch, quase não ultrapassam as caricaturas deslavadas. Depois, o outro personagem muito importante, o filho de Varvara, Nikolai Stavróguin, é o típico canalha dostoievskiano conjugado com o típico cristão cheio de remorsos: me pareceu insuportável - seus conflitos estão vencidos há muito e são tão exagerados que não dá pra levar a sério, beiram o melodrama dos piores folhetins. E, é interessante, deixam escapar o fascínio romântico de Dostoiévski pelo nobre belo e poderoso. Pra completar, Dostoiévski, através da figura de Karmazínov, resolve destruir Turguêniev. Turguêniev não só era uma boa pessoa, não só ajudou Dostoiévski a pagar suas dívidas, como era um grande escritor e um pensador lúcido. Dostoiévski era apenas um grande escritor.
Os vencedores, de Ayrton Centeno, Geração Editorial. Centeno teve uma grande sacada: falar da ditadura de 1964 dando rápidas biografias dos principais oponentes dela. Através desses personagens, emerge um quadro inquietante, os anos 60 e 70, a brutalidade da repressão, alguns heroísmos e generosidades e as fantasias da luta armada, os exageros, os enganos, as lutas pelo poder. Eu devia ter escrito uma longa resenha, mas a verdade é que me senti incapaz diante da massa de informação reunida por Centeno. Você pode ler praticamente como se lê um romance e se divertir, às vezes, caso tenha nervos de aço. O Brasil não é pra amadores, sabe-se.
Combate nas trevas - A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender. Radiografia talvez cruel da esquerda brasileira escrita por um militante de toda a vida. Gorender tem um texto claro e traz os fatos documentados - o homem era metódico como poucos. Meu ceticismo subiu vários graus.
Autópsia do medo - Vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, de Percival de Souza, Globo. Tentei ler o calhamaço numa pegada, mas pedi penico, e vou lendo aos poucos. Não, meu caro, Stephen King não entende nada de terror. O Fleury, sim, entendia.
A arte da ficção, de David Lodge, tradução de Guilherme da Silva Braga. Sou suspeito pra dizer que gostei - desde a adolescência não me basta escrever, quero saber como escrevi e por que assim e não de outro modo. Uma mania inofensiva, acho, comparada a colecionar selos.
Como a geração sexo-drogas-e-rock"n"roll salvou Hollywood, de Peter Biskind, Intrínseca. Me diverti muito mais do que com quase todos os romances que li este ano. A quantidade de informação sobre diretores, roteiristas, produtores, atores e filmes feitos no final dos anos 60 e 70 é simplesmente assombrosa. Mesmo assim, quando a leitura termina, queremos saber mais e rever muitos filmes.
As teorias selvagens, de Pola Oloixarac, tradução de Marcelo Barbão, Benvirá. Não suportei 50 páginas. Que mulher metida a besta, minha nossa. Pelo menos conheci um cara chamado Barbão. Não é todo dia.
Vitória, de Joseph Conrad, tradução péssima de Julieta Cupertino, em edição horrorosa da Revan. Como sempre, Conrad dá personagens reais, sólidos até o delírio, e um enredo dos mais ambíguos. Mas não gostei do final - mania de matarem qualquer mulher que tenta ser livre.
O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, tradução de Paulo Henrique Britto, Companhia das Letras. Minha primeira tentativa com Pynchon foi Mason & Dixon, que joguei fora depois de trinta ou quarenta páginas. O arco-íris me pareceu interessante, mas empaquei. Vou tentar de novo, uma hora dessas, se Alá me ajudar.
O planeta dos macacos, Pierre Boulle, Aleph. Como ficção científica é tosco, como sátira não vai muito mais longe, mas O planeta, como Tarzã, toca numa fantasia essencial. Daí que a gente lê com agrado. A edição da Aleph é um capricho.
A vida de Philip K. Dick - O homem que lembrava o futuro, de Anthony Peake, tradução de Ludmila Hashimoto, Seoman. Apesar de forçar a barra com sensacionalismos baratos, querendo vender o peixe de um Dick presciente, as próprias informações coletadas pelo autor vão nos dando a verdade. Vida complicada, como se suspeitava. Depois dessa biografia fica bastante claro o que embasa tantos romances delirantes.
O homem duplo, de Philip K. Dick, tradução de Ryta Vinagre, Rocco. Reli essa nova tradução e confirmei o que já sabia: trata-se de um dos melhores livros de Dick. A consistência com que ele descreve o mundo das drogas é de arrepiar, sem esquecer o exercício de humor negro, uma coisa sublime. Pena que o filme tenha espantado possíveis leitores. (Primeiro o Barbão, agora a Vinagre. Que coisa!)
Classes de literatura - Berkeley, 1980, de Julio Cortázar, Alfaguara. Apenas a aula sobre o que Cortázar entende por música na literatura vale o livro. Nada menos.
El camino de Ida, Ricardo Piglia, Anagrama. Bom - ou bonzinho, porque fiquei sem vontade de reler. Piglia se recupera um pouco de Blanco nocturno, uma tremenda fraude do autor e dos críticos e dos júris de prêmios (escrevi uma resenha aqui mesmo, na época).
O mundo até ontem, de Jared Diamond, tradução de Maria Lúcia de Oliveira, Record. Sempre pensei que se estudasse a pré-história acabaria descobrindo em que ponto o merengue desandou. Por este livro dá pra saber, basta somar dois e dois. Não vou resumir aqui, não - vão ler, seus preguiçosos. O único defeito é que Diamond mastiga cada informação ou cada argumento até o cansaço. Não confia na inteligência do leitor - com razão, se pensamos no que os leitores comentam na internet.
Novelas e O despovoador/Mal visto mal dito, Samuel Beckett, traduções de Eloisa Araújo Ribeiro, Martins Fontes. Segundo Juan Pablo Villalobos, "livros chatos, mas com prestígio literário criam nos leitores síndrome de Estocolmo". Mas comigo não, violão. Agora, tentei ler, juro - pra parecer chique aqui.
A metamorfose e Na colônia penal, Franz Kafka, traduções de Modesto Carone, Companhia das Letras. Quinta ou sexta releitura, nem sei, e sempre prazerosa. Não são novelas. São logotipos.
Brasil: Uma biografia, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, Companhia das Letras. Ainda não terminei - mas leio como um romance de aventura, que, no fundo, parece que é. Um romance, note-se, muitas vezes farsesco e quase sempre truculento.
Eu sabia, claro, que a dita colonização não foi uma ação filantrópica portuguesa, mas como é bom saber dos detalhes. A academia devia escrever mais livros assim, em linguagem de gente, em vez de ficar se masturbando com seus pares.
Fiquemos por aqui. Há muito ultrapassei o número de linhas que me parece razoável pra uma coluna. Por falar nisso, acho que também ultrapassei o número razoável de colunas sem interrupção alguma. Pois é, quase quatrocentas colunas, quando é evidente que eu não tenho o que dizer em cem. Assim sendo, hasta la vista, em fevereiro, se eu não afundar com o País.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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