A bicicleta azul

Algo curioso está acontecendo ? o tal pescador do ano passado, que estava sumido, voltou ao seu lugar no lago. Com sua linha de …

Algo curioso está acontecendo - o tal pescador do ano passado, que estava sumido, voltou ao seu lugar no lago. Com sua linha de pesca e a mesma velha bicicleta. Qual teria sido o motivo de seu sumiço e, agora, de seu reaparecimento? Quem sabe, o homem se animou com a chegada do outono, com suas manhãs frescas e luminosas. Ele aparece muito cedo, estaciona a bicicleta azul entre as árvores e lança a linha no lago. E por ali fica, por horas e horas, olhando as águas quietas.
Muito intrigante este pescador.

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Dizem que os pescadores experimentados são equipados com um tipo de radar, que indica onde ficam os pesqueiros. Mas este pescador deve estar com o radar desligado. Pois todos, aqui no bairro, sabem que não existem peixes no lago - no máximo, alguns lambaris e cobras d?água. Mesmo assim, o prefeito mandou colocar placas "É expressamente proibido pescar". Com tudo isso, o pescador insiste, teimando em pescar onde não há peixes.
Talvez ele esteja apenas deixando o tempo passar. Talvez tenha brigado com a mulher ou perdido o emprego e não saiba o que fazer. No outro dia, o zelador do parque foi avisá-lo que era proibido pescar. Ouviu algo que não esperava - o homem retrucou que não usava isca no anzol - e, portanto, não estava pescando?
O zelador, contrariado, foi espiar de longe. Esperou por muito tempo, até cansar. Mas viu que a linha se mantinha imóvel no meio do lago. E o pescador, no mesmo lugar, à espera de não-se-sabe-o-quê?

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Os dias se sucederam e, aos poucos, o pescador passou a fazer parte da paisagem, as pessoas não mais o estranhavam e nem o zelador se importava com ele. Apenas mais uma das tantas figuras que encontramos pelo caminho, que chegam e que vão, continuando como completos estranhos.
Algum tempo depois, o zelador do parque se deu conta que o pescador havia sumido - não estava no lugar de sempre. Nos dias seguintes, a mesma coisa. Nem sinal da figura. Curioso, o zelador foi olhar entre as árvores e fez uma descoberta - a bicicleta azul estava lá, apoiada em um pinheiro. O zelador (que se chama Lucas) coçou a cabeça. Devia guardar a bicicleta ou a deixava no mesmo lugar?
Logo, os dias luminosos chegaram ao fim, o inverno se anunciando, com frio e nevoeiro. Os funcionários começaram a faxina, limpando trilhas, recolhendo galhos e folhas. Lucas então resolveu recolher a bicicleta para o depósito, esperando que o dono a venha reclamar.

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Já se passou mais de um ano e até agora, ninguém veio resgatar a bicicleta azul. Ela continua no mesmo lugar, no depósito de achados e perdidos, apoiada em uma parede ao lado de celulares quebrados, guarda-chuvas, latas de cerveja, sandálias de verão e bonés de times de futebol. E, quando chegar dezembro, como sempre fazem, toda a tralha será encaminhada para casas de caridade.
E não temos a mais vaga ideia do que aconteceu com o pescador.  Alguma coisa o fez desistir dos peixes e de sua bicicleta azul.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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