O Curinga Imaginário

Algumas pessoas não me levam a sério quando digo que se não gosto de um texto eu o jogo no lixo, ou na gaveta, …

Algumas pessoas não me levam a sério quando digo que se não gosto de um texto eu o jogo no lixo, ou na gaveta, em caso de dúvida. Elementar, meu caro Watson, não posso mostrar o que joguei fora, mas posso mostrar aqui um conto que vive no limbo. Ele fez parte da primeira versão de Corvos na chuva. Foi retirado não porque eu não goste dele - não amo, mas não odeio - e sim porque é um conto que só pode interessar a escritores ou a outros malucos do tipo. Acho que minha paixão pela literatura ia ficar meio deslocada entre contos sobre paixões mais básicas, como sexo e morte.
Condenado, essa era a palavra: Miguel se sentia condenado. Começou com o medo - um medo de superstição, feito de sombra e de sonho, sem nenhuma prova. Depois a certeza idiota: ou escreve, ou - ou o quê? Sem choro: ou escreve ou se mata. Se matar era bem mais fácil, além de mais rápido. Não escrever o romance era meio como desistir da mulher que se ama. Não havia garantia nenhuma de felicidade com essa mulher, como sempre, mas sem ela, por melhor que vivesse, nada faria muito sentido.
Agora, ele sabia há muito: escrever é um ofício de risco, perigoso como o ofício de viver, se dá pra separar um do outro. Miguel achava que tinha a coragem necessária, mas apenas coragem não basta, é preciso astúcia e resistência - uma astúcia de espião, uma resistência de favelado. Isso ninguém sabe se tem, antes do confronto. Ou de cada confronto, porque tudo muda, a todo instante.
Miguel economizou por uns dois anos antes de pedir licença no colégio, onde lecionava História. Se mudou pra um apartamento mais barato - quarto e sala, longe de tudo -, onde ficou meio acampado, com metade das suas coisas encaixotadas. Se fizesse a própria comida, se comesse apenas duas vezes por dia, se não fosse a bares ou cinema, se o futebol fosse apenas pela televisão, se não adoecesse, talvez tivesse um ano pra tentar a sorte. Só não ia economizar no vinho tinto.
Pensou em todas as desgraças possíveis - e temeu todas, menos uma: não conseguir escrever, e isso que o romance era um mistério. Fora a cena de abertura e a de encerramento, de uma clareza até suspeita, o resto não passava de sombras de sombras, num movimento incessante como reflexos em água corrente. Teria de descobrir por que a cena de abertura levava justo àquele final, não a outro - descobrir, não inventar. Era como se o romance já existisse, prontinho vírgula por vírgula, à espera do Miguel, apenas dele. Se ele não o descobrisse, o romance se perderia.
Sempre tem alguém com a pergunta engatilhada: sobre o que é seu livro? Miguel gaguejava, aturdido - a verdade é que não sabia. Tinha algumas pistas, algumas suspeitas, mas, se falava, a cada palavra o invadia uma sensação de fraude e frivolidade. Pra ser honesto, teria de dizer que depois de ler talvez soubesse, o que não seria levado a sério, embora estivesse nos calcanhares da verdade.
Miguel tinha medo de, feito o bandido na foto do jornal, no último momento levantar o braço pra esconder o rosto. Ou fazer pose. Por isso, desde o começo, nem pensou em usar a própria biografia como quem faz hoje croquete com o bife de ontem. Não desprezava essa saída, mas faltava a Miguel a habilidade culinária e havia aprendido, na base da tentativa e erro - uns dois ou três livros anteriores -, que se deixasse os personagens por conta própria, se apenas os acompanhasse, anotando escrupulosamente o que fizessem e dissessem, eles se encarregariam do serviço sujo: matariam e morreriam no seu lugar. Pra alguém interessado em História, como Miguel, era interessante ver como a realidade de um sonho podia ser muito mais reveladora do que a realidade propriamente dita, ou uma pilha de documentos sobre ela.
Assim, sem surpresa, se viu às voltas com uma família ligada ao governo do Borges de Medeiros, entre vários personagens históricos, que Miguel pagava na mesma moeda. A Porto Alegre do começo do século vinte não o assustava: o cenário não estava no mapa, estava na cabeça das suas criaturas. Há um pai, herói da revolta de 93, fazendeiro rico, político poderoso. Há uma mãe, descendente de alemães, sonhando com outra pátria. Há uma filha e um filho - nenhum deles pronto pra família que têm. O filho, aos dezesseis anos, é morto a tiros em circunstâncias misteriosas, no quarto dos pais.
Dito assim, num resumo, a coisa parecia banal, mas isso é o que acontece com quase todos os enredos, não? Sem falar que um enredo, um bom enredo, é como uma rede: um meio de pesca. O que interessava a Miguel eram as relações entre os personagens - uma sucessão de equívocos tristemente cômicos - e a investigação de uma terra arrasada pela estupidez e pela ganância.
O romance se chamava, provisoriamente, O Curinga Imaginário. Segundo o Aurelião, em certos jogos, o curinga imaginário é uma carta que não existe, mas de que o jogador pode se valer pra fechar um jogo e bater. Uma ideia ambiciosa: Miguel esperava armar vários jogos e deixá-los à espera da carta final, que o leitor escolheria, se pudesse. Claro que o leitor sempre tira da manga o seu curinga imaginário, coisa que não passa pela cabeça dos professores com suas fichas de leitura, mas Miguel pretendia levar a conspiração ao ponto de se alterar o enredo, dependendo do curinga que a pessoa preferisse. Desse modo, qualquer um dos três personagens principais - pai, mãe, filha - poderia ser o assassino. O próprio Miguel, nos meses seguintes, fez sua aposta, aposta no escuro como a de todos, porque a verdade é que jamais conseguiu uma confissão de culpa.
O final foi como uma porta se fechando na cara dele. Assim, num segundo, Miguel estava do lado de cá, sozinho, uma sensação vertiginosa de vazio, os personagens do lado de lá, imóveis um instante antes de se dissolverem nas sombras. Miguel olhou ao redor com desconfiança, talvez com temor. Vagamente se perguntava: e agora?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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