O mundo é feminino, feminista, das vitoriosas, medalhistas e empoderadas

Rafaela, Rafaela é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta, de uma gente que ri quando …

Rafaela, Rafaela é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta, de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, quem traz no corpo a marca, Rafaela, Rafaela, mistura a dor e a alegria. Ao trocar aqui o nome de Maria para Rafaela na música original de Milton Nascimento, presto a minha homenagem a todas as mulheres, meninas, moças, jovens, senhoras e velhas que jamais desistem, que persistem, que insistem, que não cansam, que perseveram e que vão sempre à luta. De tênis, de salto agulha, de mocassim, de chinelo de dedo, de pé descalço, com bolhas e machucados nos pés. De cara lavada, com rímel em excesso, com batom vermelho, cabelos mechados ou com fios brancos. Com a cara e a coragem.
Parabéns Rafaela, da imensa família Silva deste Brasil. Não só pela medalha de ouro conquistada no judô. Não só pelo choro não mais contido após a execução do Hino Nacional depois de receber a medalha nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Não só por ter dado a este imenso povo sofrido a primeira medalha de ouro nesta olimpíada em solo esplêndido. Parabéns Rafaela, da numerosa e nem sempre festejada família Silva deste Brasil, por ser uma brasileira, humilde, lutadora, corajosa, negra, mulher, favelada. E nunca desistir. Parabéns Rafaela, da Cidade de Deus, que deu com a vitória a resposta aos atos de preconceitos sofridos pela atleta em Londres em 2012. E sempre lutar.
E alguém conseguiu não chorar junto com a Rafaela? Eu não. Debulhei-me em lágrimas. Quando ela ganhou no tatame. Quando a mãe dela falou. Quando ela ouviu o hino. Quando ela deu entrevistas. Quando ela beijou a medalha. Quando o treinador ajeitou o kimono dela. Quando ela lembrou a agressão sofrida, principalmente pelas redes sociais, em 2012, em Londres, onde preconceituosamente afirmaram que ela deveria estar numa jaula por ser macaca. E agora, seu bando de preconceituosos, discriminatórios, sem noção? Rafaela é a cara do Brasil. E levou uma medalha de ouro. Quantos de vocês merecem alguma distinção? Aposto que nenhum. Rafaela merece. Rafaela é ouro.
Fiquei feliz ao ir atrás da história desta judoca de 24 anos, um ingrediente ideal para a intolerância e o preconceito que existem, camuflados ou não, em todos os cantos deste País. E ao contrário do que alguns correram em postar nas redes sociais, Rafaela precisou sim do feminismo, da política de cotas, dos programas sociais implantados pelo ex-presidente Lula e pela presidenta eleita por mais de 54 milhões de brasileiros e brasileiras, Dilma Rousseff, como o Bolsa Atleta. O resto é blá, blá, blá de quem não quer enxergar os fatos.
Mas vamos a eles. Se não fosse, por exemplo, a luta feminista, as mulheres jamais estariam competindo. Foi em 1900 que seis mulheres enfrentaram as regras olímpicas e obrigaram a organização a criar um evento paralelo para poder competir. Se não fosse, por exemplo, o tal feminismo, Rafaela não teria entrado para a Marinha, cujo ingresso deu-se através de vagas, oriundas de uma parceria entre Ministérios da Defesa e do Esporte (leia-se cotas). Somente a partir da década de 80 as mulheres foram aceitas na Marinha e a promoção de oficiais mulheres data de 1996, resultado de lutas feministas. E foi como cotista que Rafaela beneficiou-se, durante anos, do Bolsa Atleta.
Nada disto anula os méritos próprios da Rafaela. A brasileira, a mulher, a judoca, a negra, a favelada, a pobre, a lutadora, a medalhista. Tais benefícios conquistados graças ao feminismo apenas deram mais capacidade para que Rafaela pudesse, em 2016, ter condições mais justas (ainda longe das ideais e daquelas concedidas ao mundo esportivo masculino) de competir e lutar no esporte e na vida real contra o preconceito, misoginia, pobreza, racismo e discriminação.
Na semana em que se comemoraram os 10 anos da Lei Maria da Penha. Na semana em que Rafaela calou a boca de preconceituosos. Na semana em que a nadadora Joana Maranhão anunciou que irá processar todos e todas que lhe injuriaram por um desempenho inferior ao esperado nas Olimpíadas do Rio de Janeiro. Na semana em que o Coletivo de Mulheres do SindBancários lança a cartilha "Você não está sozinha", uma importante publicação da Campanha de Prevenção e Combate ao Assédio Moral, Sexual e Discriminatório de Gênero. Nesta semana eu tenho ainda mais certeza que o mundo é feminino, feminista, das vitoriosas, medalhistas e empoderadas.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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