O passageiro

                      Fermino das Dores não se considerava um homem supersticioso, mas ficava atento às …


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fermino das Dores não se considerava um homem supersticioso, mas ficava atento às coisas que acontecem ao nosso redor e que não têm explicação. Acomodado no banco de madeira na estação de trens, ele notou, do outro lado da sala, o homem alto e magro. Tinha os cabelos grisalhos escapando do chapéu de abas largas e havia algo familiar nele.
Talvez o olhar enviesado, que ele sabia em pessoas que tinham muito a esconder. Seu avô sempre dizia "desconfia de quem não olha de frente". E completava, enigmático:
"- Quem olha de viés, tem conta com satanás."

***
O trem estava atrasado e a espera prometia ser longa. Foi tomar água e esticar as pernas. Quando voltou, viu que o homem magro continuava no mesmo lugar, parecia não ter movido um músculo. Olhava para longe, onde a linha férrea sumia no mato. Fermino rebuscou a memória para tentar lembrar daquele homem, daquele olhar. Mas se perdia em labirintos de lembranças (o que sempre acontecia quando recordava coisas antigas). Se enredava em detalhes - justamente os que gostaria de esquecer. No entanto, algo lhe dizia que o homem do outro lado da sala era uma das tais coisas que deviam permanecer esquecidas.
Um apito avisou que o trem estava chegando. A estação se esvaziou, os passageiros se movimentando na plataforma, em busca de seus lugares. Fermino viu, curioso, que o homem magro foi até a ponta da plataforma e embarcou no último vagão, o menos procurado, porque ficava no rastro da fumaça negra da locomotiva.
Com ferros batendo e madeiras rangendo, o trem emitiu um longo apito e retomou viagem. Pela janela, olhando sem ver os campos e plantações, Fermino tentava não pensar no homem do último vagão, ("deve gostar de fuligem e fumaça de carvão").

***
Quando o trem reduziu a marcha para vencer uma velha ponte de ferro, os ruídos da travessia lembraram Fermino da ponte de madeira do rio Camaquã. Era o caminho obrigatório para o cemitério da vila, no alto do morro. Os mais velhos diziam que era melhor molhar os pés cruzando o riacho mais abaixo, do que atravessar a ponte, dentro de um caixão de madeira. Mas gostavam de apreciar a passagem dos enterros a caminho do cemitério. Para os meninos mais velhos, uma festa - chegavam cedo, subiam nas árvores e esperavam pelo triste cortejo.
Na maior parte, quando o finado era um peão pobre, haviam poucas pessoas e apenas um carroção para levar as mulheres. Mas quando o morto era de valia, fazendeiro ou veterano da guerra, a festa era bem movimentada. Muitas carroças, gente a cavalo e o Ford modelo A da Intendência, que abria o cortejo, seguido de pessoas trajadas de negro. Caminhavam lentamente e quando chegavam à ponte de madeira, reduziam o passo, pisando com cuidado nas tábuas soltas. As crianças iam pela mão, proibidas de olhar para baixo, para não sentir medo. Uns soluçavam, os meninos nas árvores mal contendo o riso.
O cemitério da vila era tão antigo que mesmo os mais velhos não sabiam quem e quantos estavam enterrados lá. Nas lápides gastas de pedra, mal se podia ler uma data, um resto de nome. Era cercado por um gradil de ferro enferrujado, um portão sem tranca nem chave.
Em certas noites ventosas, o portão parecia gemer, solto nos gonzos. As mulheres se benziam, murmurando que eram as almas pedindo reza. O avô de Fermino emendava na hora:
"- Cemitério não precisa tranca, quem mora lá não foge?"

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O trem apitou uma, duas vezes, avisando que estavam chegando à primeira parada. Era uma cidadezinha perdida no meio do nada e dali pra frente, os trilhos seguiam em linha reta, pelos campos sem cerca. Uma viagem na escuridão, noite adentro, em direção a um horizonte que nunca chegava.
Fermino das Dores espreguiçou-se e, para afugentar o cansaço, andou pelos vagões, tentando acompanhar o balanço do trem. Muitos ainda dormiam e outros se preparavam para desembarcar.
Atravessou a última plataforma, sentindo nos olhos e garganta a fuligem acre da fumaça negra. Queria dar mais uma boa olhada no homem magro, antes que ele desembarcasse. Mal se equilibrando, abriu a porta do último vagão e entrou. Deu alguns passos e parou. Não havia ninguém, o vagão estava vazio.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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