Pilar

“Ele perdeu tudo o que amava”. Mary Welsh Hemingway. *** A primeira impressão é que estamos diante de mais uma daquelas biografias de oportunidade, …

ja"Ele perdeu tudo o que amava".

Mary Welsh Hemingway.

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A primeira impressão é que estamos diante de mais uma daquelas biografias de oportunidade, cujo título é mais inspirado do que o texto. No entanto, o jornalista Paul Hendrickson consegue traçar um comovente paralelo entre as grandes paixões de Ernest Hemingway e o trágico fim de todas (ou quase todas) elas. Seu livro, "Everything He Loved in Life, and Lost", cobre o período de 1934 a 1961, justamente os 30 anos mais tumultuados e trágicos da vida do escritor. A narrativa começa em novembro de 1934, quando Hemingway recebe o seu sonhado "Pilar", um barco de pesca oceânica de 34 pés.
Ele o encomendara um ano antes, em New York, quando recebera os direitos autorais de "Por quem os sinos dobram". Bem apropriadamente, ele batiza o barco com o nome da líder partisan da guerra civil espanhola, um dos mais marcantes personagens da célebre novela.
O livro de Hendrickson poderia ter como subtítulo, "O Barco de Hemingway". Mesmo já sentindo o peso dos excessos de uma vida desregrada e sem medidas, ele não usa o barco para relaxar e passear. Ao contrário, a bordo do "Pilar", ele disputa (e vence) competições náuticas e vai em busca do marlin azul, o mais cobiçado dos troféus de pesca dos mares do Caribe.
"Everything?" acompanha Hemingway até o sombrio mês de julho de 1961, em Ketchum, Idaho, quando ele se suicida, disparando sua espingarda de caça predileta.

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Quase todas as biografias de Ernest Hemingway são dedicadas a escrutinar sua vida amorosa, as façanhas aventureiras, as caçadas na África e - principalmente - a fase boêmia na Paris dos anos dourados. E seria na Cidade Luz que, Hemingway e sua jovem esposa Hadley, iniciam uma trajetória romântica e aventuresca, seguindo as pegadas dos expatriados norte-americanos, que Gertrude Stein sabiamente rotula de "The Lost Generation". Já o livro de Paul Hendrickson simula uma metáfora, ao colocar Hemingway como piloto de um barco agitado por ventos e tempestades.  Poderíamos até identificar uma citação, subtraída do último parágrafo de "The Great Gatsby", o romance icônico do rival e amigo de bebedeiras, F. Scott Fitzgerald:

"So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past."

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Estamos acostumados a olhar Ernest Hemingway como "grande escritor, aventureiro, herói e machista", múltiplos personagens que os biógrafos descrevem, mas raramente tentam traduzir. Esta recente biografia lembra que, em seu terço final de vida, Papa se transformara em um fantasma de si mesmo, um melancólico "caso médico", pagando o ônus das concussões sofridas em lutas de boxe e das fraturas e lesões de dois acidentes aéreos. Ao mesmo tempo, estudiosos de sua vida piedosamente nos poupam do detalhamento dos outros sofrimentos (que ele escondia), consequência de décadas de alcoolismo e da depressão severa que o fazia desafiar a morte, de forma obsessiva, enquanto luta com seus piores demônios interiores. As grandes novelas de Ernest Hemingway - obras primas da literatura do séulo XX - foram concebidas e escritas antes de 1940, ao longo de suas temporadas europeias. Mas seria nos mares do Caribe que ele amadureceria a ideia que acalentava desde 1936 - a versão trágica e anti-épica da luta do Capitão Ahab contra a grande baleia branca. Em Cuba, ele termina seu último grande livro, "O Velho e o Mar", que lhe vale o Nobel de Literatura de 1954.
Mais tarde, em 1960, sua quarta esposa, Mary Welsh Hemingway, o convence a deixar a Finca Vigia e procurar tratamento médico nos Estados Unidos. Hemingway ainda acalenta planos de regressar a Cuba e voltar a navegar com seu barco. No entanto, o mundo havia mudado: a invasão da Baia dos Porcos e o discurso de Fidel Castro anunciando o confisco de propriedades e bens de estrangeiros, cortou todas as suas esperanças. Com a tragédia de 1961, Mary Welsh doa "Pilar" para Gregorio Fuentes, por muitos anos o imediato de Hemingway e que o inspirou na criação do velho marinheiro Santiago. Em 2002, depois da morte de Fuentes, o barco seria restaurado e instalado na quadra de tênis da Finca Vigia, como atração para turistas e visitantes.
Melancólico e prosaico destino para um barco carregado de história e estórias. Ele navegou com passageiros ilustres a bordo, como Ava Gardner, Errol Flynn, Fidel Castro, John dos Passos, Gordon Sinclair e Archibald MacLeish. Com Hemingway ao leme, venceu a regata Key West-Havana-Bimini, competindo com barcos maiores e mais velozes. E ainda levantou recordes na pescaria do marlim azul e foi apoio às patrulhas anti-submarinas durante a II Guerra.
Por último, mas não finalmente, "Pilar" se transformou em objeto de ódio para Martha Gellhorn, a sanguínea terceira esposa de Hemingway. Ela se dizia humilhada, ao ser preterida por ?um velho barco de pesca que fedia a peixe e óleo diesel?.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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