O presente que ganhei há 22 anos

Era um início de uma noite quente de uma terça-feira que encerrava o sexto dia de dezembro de 1994. Depois de aplicar as técnicas …

Era um início de uma noite quente de uma terça-feira que encerrava o sexto dia de dezembro de 1994. Depois de aplicar as técnicas seguras e confortáveis de indução, a médica obstetra, que começou a insistir em parto normal às 14h, uma vez que já completava 40 semanas de gestação, anunciou, lá pelas 18h, que a opção restante seria a cesariana. Avisados todos os envolvidos, providências tomadas, pediatra de prontidão e fomos para a sala cirúrgica ver meu bebê nascer pelos métodos não naturais, porque parecia, até então, que ela não queria de jeito nenhum deixar meu ventre. Exatamente, às 19h29min, recebi o melhor presente da minha vida. No dia 6 de dezembro de 1994, nascia a minha filha, que dividiu a minha existência em antes e depois de Gabriela.
Tudo se altera e ganha um novo sentido quando se conhece a maternidade. Nada é igual à emoção de se gerar um filho ou uma filha. Nada se compara à sensação de carregar dentro da barriga durante nove meses uma extensão da vida da gente. Nada se assemelha aos momentos de tensão pela expectativa de ver o nenê nascer, conhecer seus olhos, seu nariz, seus traços, ouvir seu choro. Nada é similar à responsabilidade de saber que você traz no seu interior um coração batendo. Após a maternidade, toda a mulher transforma-se numa leoa, capaz de mover mundos e fundos para assegurar e garantir a saúde e o bem-estar do seu rebento.
Gosto demais de um pensamento da poeta e tradutora brasileira Alice Ruiz. Ela diz que depois que um corpo comporta outro corpo, nenhum coração suporta o pouco. Por isso, a minha vida tem duas fases distintas. Antes do nascimento de Gabriela (AG) e depois do nascimento de Gabriela (DG). Claro que na etapa AG, as minhas noites de sono eram mais tranquilas, eu conseguia planejar as minhas férias com antecedência e cumprir os planos, os dias eram bem menos cansativos e tensos e eu podia ser mais impulsiva e ter explosões porque eu era única e exclusivamente responsável por mim. Confesso ser um período mais calmo, sossegado, sereno e com um cotidiano de quietude. Talvez até uma vida menos colorida, com um cenário mais tedioso.
Com a chegada de Gabriela, passei a experimentar a fase DG, que sempre foi mais turbulenta, agitada, imprevista, impensada, repentina, súbita e repleta de surpresas. Nenhum dia é igual. Nenhuma noite é de sono ininterrupto, sem sobressaltos. Nenhum planejamento de férias poderá ser cumprido porque tudo depende da saúde da filha, do recesso escolar e do desejo de tirar os dias de descanso ao lado da mãe já mais velha e rabugenta. Confesso ser um período incalculado, inadvertido, circunstancial e com uma rotina que beira aos sinais mais agudos de loucura. Com certeza, é uma rotina que passa longe de um retrato em branco e preto. São momentos que toda a mãe gostaria de reviver e eternizar pelo resto de sua vida. Porque qualquer angústia, qualquer insônia, qualquer dor, qualquer atraso ao retornar de uma balada são facilmente superados pelo abraço apertado, pelo cafuné no cabelo, pelo sorriso aberto e pelos momentos de carinho.
A minha vida virou um turbilhão de emoções com o nascimento de Gabriela. A etapa DG me deixou mais angustiada, mais tensa, vivendo na corda bamba. E nem sempre a vida entre mãe e filha é um eterno conto de fadas. Não são poucos os momentos dos nossos embates, de discussões, de desavenças. Mas ninguém disse que seria fácil. Especialmente quando se convive com uma moça de 22 anos que esbanja um estilo forte e próprio de ser, que é obstinada na busca de justiça social e igualdade para todos, na sua crença de que um mundo melhor é possível, na sua fidelidade com seus amigos e na batalha incessante por todas as questões de direitos humanos.
Nós temos algumas diferenças, que se acentuam, é evidente, com a minha velhice e com a tenacidade jovem dela. E principalmente porque tenho um hábito insuportável (tento corrigir, mas são anos de imperfeição) de exigir muito dela. Mas tudo é vencido pelo seu sorriso, pelas gargalhadas, pelo seu jeito apressado e atrapalhado de entrar em casa, pelos afagos que faz no seu muso canino Dalai, pelo remexer nos cabelos, pelas inúmeras fotos que faz dela. Tudo é superado pelos minutos de sono que ela tira comigo nos poucos intervalos da Ocupa Fabico UFRGS em casa, como no último sábado. Filha: tenho muito, mas muito orgulho de você. Obrigada por ter sido o meu melhor presente nos últimos 22 anos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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