A Bolívia é logo ali

Por Marino Boeira

Onde muita gente vê semelhanças, nós, os brasileiros, vemos diferenças. Como os argentinos se consideram parte da Europa no hemisfério sul, nós nos imaginamos os norte-americanos do sul do Equador, diferentes de paraguaios, colombianos, peruanos e bolivianos, principalmente os bolivianos.

Os verdadeiros norte-americanos parecem não pensar assim. Quando visitou o Brasil em 1982, durante o último governo da ditadura, o de João Figueiredo, o presidente Ronald Reagan, no jantar de despedida, levantou sua taça para saudar o povo ...boliviano.

Uma boa parcela de brasileiros não gosta de ser confundida com bolivianos porque se acha mais branca e importante do que eles.

Uma pena, porque eles têm muitas coisas para nos ensinar.

Em 2015, fiz um longo périplo pela Bolívia, de carro, partindo de Puerto Suarez, na fronteira com Corumbá e seguindo por centenas de quilômetros, em direção a Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba, El Alto, Copacabana, no Lago Titicaca, e saindo pelo Peru no rumo do Oceano Pacífico.

Na fronteira, o policial brasileiro, mostrando como o preconceito é grande, alertava para o perigo que existe em andar "no meio desses índios" pouco afeitos à civilização, principalmente para a corrupção de seus policiais.

É verdade, a cada posto de pedágio, a cada barreira policial, vem sempre o mesmo pedido -  "una propina para el té".  Parece ser uma instituição nacional. A propina é pedida sem o disfarce comum em estradas brasileiras, argentinas ou uruguaias, onde ela só é "sugerida", depois de cansativas enumerações de todas as infrações hipoteticamente cometidas pelo motorista. Na Bolívia, o pedido é feito abertamente, sem constrangimentos, sempre com um sorriso de quem conta com a tal propina como um complemento salarial.

Fora isso - que não parece muito grave - só encontramos gente hospitaleira, sempre pronta a ajudar, vivendo uma democracia social dificilmente da encontrada em outros lugares.

Se nós tivemos um presidente operário, Lula, quebrando a hegemonia de uma elite política que durou séculos, eles tinham (e têm ainda) um presidente indígena (Evo Morales) da etnia dos Uru-Aimarás, líder sindical dos cocaleros, agricultores que cultivam a coca para fins medicinais.

Depois de enfrentar as intenções norte-americanos de erradicar a coca da Bolívia, como tentaram fazer na Colômbia, provocando uma guerra interminável, Morales conduz um país pacífico e democrático, com amplas possibilidades de um grande desenvolvimento nos próximos anos.

As maiores reservas de lítio do mundo - material fundamental para a produção de baterias para celulares e computadores - se encontram na grande salina de Uyuni, enquanto o manganês, outro material de alto valor estratégico é abundante em Mutun, na região de Puerto Suarez.

Obviamente, todo esse potencial econômico tem feito com que o grande capitalismo internacional volte seus olhos para a Bolívia, como faz no caso do petróleo na Venezuela e tente desestabilizar o governo de Morales, tarefa na qual é amplamente ajudado pela mídia, inclusive do Brasil.

A Bolívia e seus governos devem ficar atentos, porque é o país sul americano que mais sofreu com os interesses imperialistas sobre suas grandes riquezas minerais.

De 1879 a 1883, a Bolívia, ao lado do Peru, foi amplamente derrotada pelo Chile, então armado pelos ingleses, na chamada Guerra do Pacífico. Mineradoras chilenas, de capitais ingleses, que exploravam as riquezas minerais - cobre e salitre - do deserto do Atacama, então território boliviano, se recusaram a pagar os impostos cobrados pela Bolívia e armaram as causas para a guerra, no qual o Peru participou por força de acordos militares com a Bolívia.

No final do conflito, toda a região de Tarapacá, do Deserto do Atacama até a área litorânea, onde estavam as cidades de Antofagasta, Arica e Iquiqui, ficou em mãos do Chile.

Numa guerra iniciada em 1889 e terminada em 1903, aventureiros como Luiz Galvez Rodrigues Arias e o gaúcho Plácido de Castro, formaram exércitos privados e derrotaram os bolivianos no Acre e criaram uma efêmera República Acriana.

O motivo da guerra foi o controle das seringueiras, quando o preço da borracha deu um salto enorme no mercado internacional.

Quando o conflito terminou, o governo brasileiro entrou em ação e forçou os bolivianos a abrirem mão de seu território em troca de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas e a promessa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Com isso, a Bolívia perdeu mais uma parcela de seu território.

Uma última grande perda ocorreu durante a chamada Guerra do Chaco, com o Paraguai, de 1932 a 1935, pelo controle do acesso ao Rio Paraguai, que permitiria a exploração comercial de possíveis jazidas de petróleo no sopé da Cordilheira dos Andes.

Nesse caso, a Bolívia - que seria mais uma vez derrotada - iniciou a guerra estimulada pelo Standard Oil, que cobiçava entrar nessa nova área petrolífera, controlada então pela Royal Dutch Shell.

Depois de tantos conflitos, a Bolívia e seu povo merecem construir em paz um futuro melhor e nós brasileiros devemos estar ao seu lado, livres de quaisquer preconceitos.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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